Quem ‘pensa que é’ e quem sabe o que faz

Perdão, leitores, mas é irresistível apelar a certa observação – já clássica – sobre a diferença de postura entre a suposta elite brasileira em comparação a populações mais efetivamente civilizadas, especialmente europeias.

Todos já devem ter ouvido, mas vale a pena o registro. Observa esse exame – lamentavelmente menos folclórico que factual – que, diante de algum conflito social corriqueiro, desses a se encontrar no dia a dia, o indivíduo da hipotética classe superior se dirige assim ao patrício inferior: “Você sabe com quem está falando?”.

Daí apreende-se toda a soberba intrínseca ao boçal e reacionário – senão “conservador” – elitismo tupiniquim, o qual só não é maior e mais flagrante que a ignorância a sustentá-lo mesmo após séculos do hipotético processo civilizatório.

Seria redundante constar o apontamento de que postura torpe e pedante dessa natureza tem grassado lépida em momento tão marcado pelo desvalor à educação formal, ao desprezo à ciência e, claro, ao aparente asco aos direitos humanos.

Mas, não. O tal obscurantismo parece estar mesmo regurgitando estragos por todas as instâncias políticas e sociais – até porque não seria por outro motivo, senão por pura e simples incivilidade, que se sustenta a soberba tacanha no Brasil.

Por sua vez, o outro lado da história acontece de forma bem diversa. Quando uma situação de desentendimento entre cidadãos (bem) educados ocorre, aquele a ser ofendido ou agredido retruca com a seguinte questão ao suposto integrante da casta superior: “Quem você pensa que é?”.

Nota-se, portanto, a distinção entre civilidades, entre o rançoso estilo senhor feudal e o conceito moderno, algo mais afeito à social democracia.

Daí, talvez, suceda em parte o surto de prepotência no Brasil, onde defender “igualdade e fraternidade”, tolerância e democracia está se tornando sinônimo de “coisa ruim”, de “comunismo” (embora a imensa maioria a papaguear o termo sequer tenha noção do que se trata).

Vai daí, também, o equívoco de não ser apenas bacana hostilizar homossexuais, índios, chineses, jornalistas e democratas em geral, mas também cidadãos supostamente “Inferiores”, como profissionais de funções menos “nobres”.

Um belo (aliás, horrível) exemplo disso ganhou o país a partir do Rio de Janeiro, na semana passada. Na Maravilhosa Cidade, com a liberação do funcionamento de bares e restaurantes, um casal (ele recebendo o auxílio emergencial, inclusive) foi abordado em um estabelecimento da Barra da Tijuca, sem máscaras e desrespeitando o distanciamento exigido.

E, aí, o “conflito de classes”. Ao serem repreendidos pelo fiscal Flávio Graça, superintendente de Inovação, Pesquisa e Educação em Vigilância Sanitária, Fiscalização e Controle de Zoonoses da prefeitura do Rio de Janeiro, o marido passou a filmar o profissional de saúde – em clara intenção de intimidá-lo -, enquanto a esposa exibia a face da agora cada vez mais escancarada pedância retrógrada.

Em meio à discussão, o fiscal se dirige ao desmascarado como “cidadão” (algo que, talvez, por ter a ver com “cidadania”, também virou palavrão na boca de extremista). Imediatamente, diante de tamanha afronta, a madame retorquiu ao fiscal: ““Cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor do que você!”.

Caramba! “Acabou com o fiscal…”, é de se pensar… Nessa visão deturpada de boa parte da população, gastar o benefício emergencial com cachaça e desafiar a Covid-19 sem máscara, mas tendo diploma superior – embora sem uso –, tornou-se motivo de orgulho muito maior que estar trabalhando à noite com a missão de preservar vidas – ainda que muitas não façam questão de ser salvas…

(Também não seria estranho suspeitar que gente desse naipe, se ganhasse mais uns trocos além dos R$ 600 para fazer piquete em frente ao STF e ao Congresso, com o propósito de instigar golpe de estado, iria correndo ao encontro dos perdigotos de Brasília…).

Para azar do casal, contudo, a cena ridícula e achavascada acabou sendo exibida no programa Fantástico, levando a madame a perder o emprego na Taesa, empresa privada do setor de energia.

O marido, que informou já estar reempregado, tanto tem denunciado ameaças contra o casal quanto disse que poderia devolver a ajuda governamental (e deveria, considerando que a esposa agora também receberá suporte do governo, pelo seguro-desemprego).

Quanto às ameaças, é compreensível a indignação de muitos, que reagem também com agressões – tal como os que desejam aos negacionistas a contaminação pelo novo coronavírus, com um tanto de sofrimento, pelo menos para aprenderem a respeitar a ciência e aos demais cidadãos.

Contudo, o desejo de dor aos outros (pior ainda o de morte) não deve ser estimulado, sobretudo da parte de quem possui e preza pela educação, pelo bem comum e pela real civilidade.

Mais: não deseja o mal ou despreza a vida alheia quem realmente guarda amor pela família e espírito cristão, aquele do qual tanto se fala, mas pouco se pratica.

Exatamente por isso, um belo exemplo deixou o próprio fiscal, ao comentar sobre o episódio: “Acho que as pessoas não devem ser agressivas com esse casal, senão elas cometem o mesmo erro que eles cometeram. Não se pode fomentar a violência num momento desses. Não é preciso vingar a vigilância”.

Por aí se vê a diferença entre quem “pensa que é” (melhor que os outros) e quem sabe o que faz e fala.