Da reportagem
O período de quarentena, orientado pelo Ministério da Saúde para o enfrentamento ao coronavírus, deixou muitas pessoas em isolamento ao redor do mundo e, com isso, diversos artistas, que também estão em casa, reinventam-se e usam as redes sociais e mídias digitais para levar cultura à população.
O artista plástico, cenógrafo e professor tatuiano Jaime Pinheiro é um exemplo. Para passar os dias em isolamento e levar divertimento aos amigos e seguidores, ele usou um boneco que já tinha em casa e “deu vida” a um novo companheiro.
Usando técnicas de iluminação, composição e cenário, ele cria fotografias que mostram cenas cotidianas ao lado do “amigo” caipira e faz postagens diárias, contando como tem passado os dias em confinamento.
O personagem “Nhô Lau” é um boneco inspirado na figura do caipira e foi confeccionado por Pinheiro quando ele era estudante – há quase 20 anos – para usá-lo em trabalhos da faculdade.
Pinheiro contou a O Progresso que criara a peça com materiais reciclados, para mostrar aos alunos como era a construção de bonecos e, em um segundo momento, usou o personagem para ilustrar a figura do caipira no TCC (trabalho de conclusão de curso).
“Depois disso, ele (Nhô Lau) nunca mais tinha trabalhado. Estava em casa guardado, só esperando a hora dele. Agora, está me ajudando e, ainda, ajudando muitas pessoas a se distrair um pouco”, comentou o artista.
O cenógrafo, que tinha rotina agitada, com muitos compromissos, disse que a ideia de usar o personagem surgiu por acaso, entre o terceiro e o quarto dia de isolamento, como uma forma de passar o tempo.
“Depois de alguns dias, comecei a ficar com mal-estar, até que fui limpar a casa e, no meio da arrumação, encontrei meu amigo. Fiz uma brincadeira, criando uma animação para ocupar a minha cabeça, e acabei publicando. Alguns amigos curtiram, e gostei da ideia”, iniciou.
A primeira postagem com o companheiro foi feita no dia 20 de março, por volta das 20h, no Instagram (@jaimepinheiro58) e no Facebook. A foto mostra Pinheiro ao lado de Nhô Lau, em casa, à mesa, com uma taça de vinho para cada um, e a legenda: “Burlando o confinamento I: Sexta-feira ouvindo ‘causos’. É bom ter amigos que estão sempre juntos. Valeu, Nhô Lau!!!”.
Somente pelo Facebook, foram quase 400 reações e mais de 60 comentários de amigos e conhecidos do artista, que entraram na brincadeira e deram ainda mais vida ao personagem criado por Pinheiro.
“Ele começou a me fazer bem e acabou desenvolvendo minha área de criação, que estava meio estacionada. O pessoal que me acompanha pelas redes sociais também gostou, então, continuei com as postagens”, conta.
Depois disso, vieram várias publicações, mostrando como os “amigos” estão vivendo no isolamento, com momentos tocando viola, contando “causos” de assombração, ou simplesmente assistindo televisão, fazendo refeições, cortando o cabelo ou aprontando alguma “peripécia”.
Segundo Pinheiro, depois da terceira publicação, vendo as notícias sobre a situação da Covid-19 no país e ao redor do mundo, ele chegou a ficar com receio de que as postagens parecessem falta de respeito e de que ele próprio estivesse brincando com a situação.
Com isso, fez uma nota explicando qual era a intenção das postagens, e diz ter ficado surpreso com a reação dos seguidores. “As pessoas estavam entendendo a proposta, e o mais legal: Nhô Lau começou a despertar uma coisa infantil, nostálgica, cultural e, principalmente, emocional nas pessoas”, comenta o artista.
As imagens sempre mostram situações cotidianas. Em algumas cenas, somente o personagem aparece em ação; em outras, Nhô Lau está ao lado do criador. Em comum, todas têm nas legendas características de uma “boa prosa”.
As imagens também trazem cenários com objetos e símbolos em referência às tradições caipiras, desde as falas e vestes do boneco até detalhes como a tradicional caneca esmaltada, conhecida como “ágata”, para um cafezinho.
Pinheiro salienta que as publicações têm como inspiração os avós, nascidos e criados em meio à tradição “cabocla”. “A ideia é criar emoção, estimular comentários, valorizar as tradições, sensações, levantar boas lembranças, trocar ideias e conhecimentos”.
“Uso um jogo de palavras que meus avós e antepassados usavam. Acho que isso acabou envolvendo aqueles que também têm lembranças do passado. Eu gosto muito do tema, então, as postagens vêm naturalmente”, afirmou Pinheiro.
Fotos: arquivo pessoal
Para trabalhar a foto e passar a mensagem por meio da imagem, o artista usa as técnicas de cenário, composição, iluminação e outras, mas enfatiza: “O resto é emoção”. Pinheiro revela que, muitas vezes, emociona-se em meio às lembranças que inspiram as montagens.
“Na verdade, acho que é o Nhô Lau que carrega essa emoção. Este personagem tem me ajudado muito, ocupando o meu tempo e resgatando minhas memórias. E tenho certeza que também tem ajudado os outros. Isso me deixa ainda mais empolgado para criar novas postagens”, assegura o artista.
Exemplo disso pode ser acompanhado pelos comentários nas publicações. Muitos seguidores começaram a enviar mensagens ao artista, alguns entrando na brincadeira, outros enviando recados para o Nhô Lau, agradecendo pelo trabalho artístico e, ainda, marcando relatos emocionados.
“Uma amiga me disse que chega do trabalho e, no meio da correria, sempre vai ver o que foi postado para saber o que Nhô Lau está aprontando. Também recebo depoimentos de pessoas que estão isoladas, de que aquilo traz alegria, conforto e lembranças”, destaca o cenógrafo.
Conforme Pinheiro, surpreender o público com situações inusitadas acaba dando cada vez mais vida ao personagem e o leva para o cotidiano das pessoas.
“A intenção não é fazer piadas, mas sim trazer memórias, provocar depoimentos, fazer a pessoa se lembrar da própria história, e, para mim, também é uma homenagem aos meus avós e às pessoas queridas”, ressalta.
Por meio das redes sociais, as situações vividas entre os “amigos” ganharam alcance mundial. Pinheiro apontou que tem diversos seguidores ao redor do mundo acompanhando as publicações.
“O mais legal é saber que a gente pode chegar a qualquer lugar do mundo. Em uma postagem com um ‘boa noite!’, uma pessoa do Japão me cobrou, dizendo que era ‘bom dia’. Tenho amigos em vários lugares do mundo que estão aguardando a brincadeira”, descreve.
Além disso, o alcance das postagens rendeu ao artista a oportunidade de ajudar em projetos sociais. Com as publicações, Pinheiro foi convidado a participar do projeto “Manifesta Arte em Rede”, iniciativa que arrecada fundos a comunidades carentes.
A ação reúne mais de 30 coletivos, representantes de projetos culturais e organizações de São Paulo, os quais se apresentam on-line no esquema “pague quanto puder” e doam 80% do valor arrecadado para ajudar quem está mais vulnerável durante a pandemia do coronavírus.
O artista oferece a arte e o público contribui de forma espontânea com qualquer quantia em dinheiro, através do link: http://vaka.me/955819. As doações serão distribuídas entre as entidades: Missão Belém, Arsenal da Esperança, Pastoral de Rua, Terra Indígena Jaraguá, Unas Heliópolis e Anjos da Sopa (Grande ABC).
“Para falar a verdade, o boneco tem uma mágica que nem eu entendo. Tem hora que eu olho para ele e fico pensando na missão que ele carrega. Eu o encontrei sentado em um lugar que ele estava havia quase 20 anos. Olhei para ele, e ele estava olhando direto para mim. Ele quis nascer agora, e tem algum propósito”, observa o artista.
Embora tenha colocado o personagem em ação para ajudar a passar o tempo no período da pandemia, Pinheiro assegura que deve manter Nhô Lau em atividade e antecipa que o “amigo” terá muito trabalho pela frente.
“Ele tem trazido muitas memórias, muitas conversas gostosas, muitos termos caipiras, e acho que isso ainda vai render um dia, quando tudo voltar ao normal, um ‘Café com o Nhô Lau’. E vamos ter muita prosa com ele”, concluiu.