Antigamente, pelo menos diante do mais popular veículo utilizado pela chamada indústria cultural, a televisão, era um tanto mais complicado exercer o livre arbítrio, dada a incômoda necessidade de se levantar do sofá para alcançar um negócio que, talvez, as novas gerações nunca tenham ouvido falar, denominado “seletor”.
Esse treco, para quem não sabe, costumava ser uma peça redonda, disposta ao lado da tela da TV, com números diversos, parecido com relógio de pulso, porém, sem ponteiros. Ao girá-lo, acontecia um negócio fantástico, algo que resistiu ao tempo e segue em plena atividade: a “troca de canal”!
Esse sagrado e fundamental direito do cidadão supostamente livre – a opção da escolha – ganhou estímulo extraordinário quando, anos mais tarde, surgiu outro utensílio idolatrado pelo conforto: o controle remoto – objeto digno das invenções mais fabulosas da genialidade humana, que possibilitou a prática do livre arbítrio sem o abandono do sofá ou da cama.
Por certo, contudo, as opções não eram tantas, frente a poucos canais na grade televisiva. Até então, existia apenas a oportunidade de escolha entre os que ainda são conhecidos como “canais abertos”, aqueles transmitidos gratuitamente e recepcionados por quaisquer aparelhos de TV. Todos – como ainda ocorre -, a partir de concessões do governo federal.
E, então, nova revolução em benefício do livre arbítrio: aparecem as TVs por assinatura, as quais, salvo o fato de terem um custo nem sempre acessível a todos, abriram outro universo de opções.
Com a popularização desse sistema de transmissão e o aprimoramento dos serviços de internet, os canais de TV alternativos deixaram de ser transmitidos somente por cabo e satélite, alcançando outro ponto elevado de abrangência, por meio dos “streamings” – cujo mais conhecido é a Netflix, relativamente barato e repleto de opções para todos os perfis de telespectadores.
Tudo isso parece ótimo e já seria motivo cabal para, em pleno “século 21”, frente a tanta modernidade, jamais se ver novamente em pauta na mídia, na política e no dia a dia a defesa da censura e das proibições como alternativas para quaisquer supostas necessidades, tampouco como soluções.
Explicando: está para estrear, justamente na Netflix, uma animação (desenho animado), chamada “Super Drags”, em que as personagens são super-heróis que combatem criminosos. Para tanto, os protagonistas se “montam”. Ou seja, assumem figuras de travestis e saem pegando os bandidos – para prendê-los!
Muito bem, trata-se de um programa (atenção!) com classificação para “16 anos”, alheio à grade própria para crianças.
Não obstante, há um grupo de políticos integrantes de uma “frente parlamentar”, cuja atuação seria em favor “da família” (como se todos os demais que com eles não concordam fossem “órfãos” ou filhos da chocadeira da esquina), que busca claramente censurar o desenho animado, sob a justificativa de que ele seria “negativo” para as crianças…
Então, ficam as dúvidas: por que não proibir todos os programas, por exemplo, nos quais aparecem bandidos, a se considerar que basta a criança ver algo na TV para assumir o mesmo comportamento das personagens?
Ou, no caso, esse pessoal que não consegue mais conter a sanha inquisidora, autoritária e indisfarçadamente homofóbica prefere ver os filhos assaltando bancos a se vestirem de mulher?
Na ficção, há heróis que vieram do espaço (Super-Homem, Guardiões da Galáxia…), da feitiçaria (Harry Potter, Doutor Estranho…), da tecnologia (Robocop, R2-D2…), do reino animal (Scooby-Doo, Patrulha Canina…), da mitologia (Thor, Mulher-Maravilha…), do “além” (vampirada e lobisomens da série “Crepúsculo”, todos da franquia “Hotel Transilvânia”…) e até do “Inferno” (Hellboy, Motoqueiro Fantasma…).
Tudo pode, até herói que, literalmente, tem “licença para matar”, o agente 007 (“Bond, James Bond”…), – policial, julgador e carrasco ao mesmo tempo, portanto. Sem problema, sem censura. (E isto é o correto, óbvio, pelo bem da democracia e da liberdade de escolha, de opinião, de expressão). Mas… se o herói for um gay, aí seria diferente? Bala na cara sem julgamento pode? Homem com uniforme feminino, jamais?
De qualquer forma, politicada das trevas, o programa em questão (que serve de exemplo à escalada da censura no Brasil), “não” é para crianças, sendo classificado para “adultos” – sim, porque, conforme amplamente antecipado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro e com amplo apoio popular, os jovens de 16 anos perderão a inimputabilidade. Eles passarão a ser, efetivamente, considerados adultos.
Ou seja, podem votar, podem dirigir, podem até ser julgados e condenados como adultos, mas, espera! “Assistir comédia com personagens gays? Ôpa, isso jamais! Aí já passou do ponto!” Seria isso mesmo?
É difícil compreender de onde vem, qual a causa de tanto ódio aos “diferentes”, que já sofrem desde a infância por conta de suas peculiaridades… Entretanto, não é complicado notar o fato de que o autoritário, o censor, quase sempre, é tão fortemente convicto em suas crenças opressoras quanto frágil em sua sensibilidade e empatia para com quem sofre discriminação e as demais dificuldades comuns às “minorias”.
Pelo menos deveriam saber diferenciar crianças de adultos, saber ler as indicações dos programas e permitir que ainda se possa fazer uso não da censura e das proibições, mas da maravilhosa tecnologia que é o controle remoto, aparelho cuja função deveriam estudar melhor.
Com esse conhecimento, em suas próprias casas, mudariam de canal à vontade e educariam seus filhos como bem quisessem, respeitando esse mesmo direito junto aos demais genitores e, assim, menos interferindo na vida alheia e no livre arbítrio de outrem.