A liberdade de poder dizer o que se pensa, de se expressar livremente, é algo garantido apenas pela democracia. Mesmo os absurdos sem qualquer fundamento têm vez no chamado Estado Democrático de Direito, até as manifestações que pedem o fim justamente desse estado, em favor, por exemplo, de uma ditadura.
Este particular configura-se na principal diferença entre os estados totalitários – do tipo que só possuem Judiciário e Legislativo de enfeite, prostrados a serviço do Executivo – e os democráticos.
Usando de outro exemplo, em uma democracia, é possível organizar uma gangue e ficar acampado diante da corte suprema e do Congresso pedindo o fechamento destes Poderes sem que, com isso, alguém seja levado à prisão.
Em um estado autoritário, manifestações dessa natureza são imediatamente dispersadas, e na base da porrada – literalmente. Mais até: sequer são permitidas. Aqueles a questionar o governo, em geral, não apenas apanham, mas podem ser detidos e, não raro, virem a desaparecer…
A despeito disto, há quem defenda a extinção de um modelo político que, apesar dos defeitos, ainda lhes garante a liberdade de ir às redes sociais e falar o que bem lhes vem à cabeça, de até ofender, ameaçar e bradar contra a Constituição sem qualquer receio.
Muito provavelmente, o fazem exatamente porque não sentem medo. Não obstante, se esqueceram – ou nunca souberam mesmo – que as ditaduras se sustentam justamente pela imposição do medo.
Se conseguirem seu objeto de desejo mórbido – um novo estado totalitário -, podem se esquecer dessa desenvoltura toda em falar o que pensam. Mas, adianta alertar? Parece que, para um quarto do povo, não…
E isto em nome de quê? De Deus e da “família” é que não pode ser. Afinal, desde quando Deus tem desprezado a paz, a conciliação, a solidariedade, a compaixão, dando lugar à solução de todo e qualquer incômodo ou problema pelo caminho do conflito e, possivelmente, da morte (senão, por que tanta obsessão por armas de fogo?).
Em nome de uma utópica família perfeita, então? Em que não há cidadãos falhos? Em que todos são absolutamente incorruptíveis, puros, “limpinhos”? Em que o pecado, se existe, sempre mora ao lado?
A propósito, isso realmente existe? E famílias todos não as têm? Da miserável mulher que ganha o sustento com a mais antiga profissão do mundo, passando pelo homossexual que trabalha feito doido e contribui com toda a sociedade também pagando impostos insanos, até os megaempresários que querem todo mundo nas ruas para aproveitar as liquidações do magazine mais próximo, todos têm família… E, por certo, aos olhos de Deus, merecem o mesmo respeito e atenção. A mesma compaixão!
Por ora, enquanto segue a escalada autoritária, enquanto ainda é possível se expressar sem levar borrachada, o melhor seria a revalorização das virtudes democráticas – claro, com responsabilidade e atenção a seus defeitos, que realmente existem.
Uma destas necessidades se encontra precisamente em apurar o senso crítico em meio a tanta liberdade de expressão e opinião (o que, mais uma vez, ainda é infinitamente melhor que o contrário), sobretudo com relação às teorias extravagantes e às fake news.
Uma questão delicadíssima neste momento – que pode dar impulso a ainda mais mortes precipitadas -, é a ideia torta, expressada em redes sociais, de que, apesar da quarentena, os óbitos por Covid-19 estão aumentando, sendo ela, portanto, ineficaz.
Nada disso. Na verdade, é rigorosamente graças ao isolamento social que os falecimentos pelo novo coronavírus estão se sustentando neste patamar “pequeno” – em Tatuí, inclusive. Não obstante, o tal senso crítico é fundamental para não se deixar levar por uma espécie de “pegadinha” e acabar, ao final dessa pandemia, fazendo papel de mais um inocente útil na manada de incautos.
Sobre este particular, publicou artigo muito elucidativo Atila Iamarino, doutor em ciências pela USP, pesquisador da Universidade de Yale e divulgador científico no YouTube, por canal pessoal e pelo “Nerdologia”.
No texto, o cientista observa: “O sucesso do isolamento social é claro a cada país derrubando casos de coronavírus. Na Alemanha, cancelar aglomerações como jogos encolheu o crescimento diário de casos de 30% para 12%. Fechar escolas e creches reduziu para 2%. Só com distanciamento obrigatório e comércio fechado conseguiram transformar crescimento em queda de 3% de casos.”
Para reforçar o argumento, Iamarino aponta que “a explicação banal pode ser dada pelo paradoxo da prevenção, descrito em 1981 pelo epidemiologista Geoffrey Rose. Descrevendo medicina preventiva, ele demonstrou que portadores de colesterol muito alto são pouco numerosos entre os mortos por problemas cardíacos. Isso porque muito mais pessoas têm índices comuns e predominam em estatísticas. Segundo ele, ‘um número grande de pessoas exposto a um baixo risco tem mais chances de gerar mais casos do que um número pequeno de pessoas exposto a alto risco’”.
E detalha: “Milhões de pessoas em casa têm bem menos risco de se infectar, mas ainda podem gerar mais hospitalizações do que alguns milhares de trabalhadores se arriscando.”
O sucesso do isolamento, defende o cientista, cultiva seu próprio fracasso. “Previsões chocantes demandaram quarentena, as medidas foram adotadas e os casos deixaram de crescer. Um sucesso que dá margem para perguntarem: ‘Cadê os casos todos que estamos prevenindo?’”.
“Cassandra dava previsões nas quais ninguém acreditava. Epidemiologistas dão previsões invalidadas por quem as leva a sério. São profecias autossabotadoras, como o bug do milênio. O mundo gastou bilhões resolvendo o problema e a virada foi tão tranquila que deu a impressão de que não era nada de mais”, reforça.
“O que fazer com quem sai de casa? A conclusão de Rose é social. Como pessoas de baixo risco são tão mais numerosas, estratégias massivas fazem bem mais efeito, mas são difíceis de implementar.
Uma medida que melhore um pouco os índices de colesterol de todo mundo teria um efeito enorme. Mas cada indivíduo tem pouco a ganhar com ela. Banir frituras poderia controlar o colesterol de milhões, mas milhares ficariam sem fritura para cada vida salva. Entre comer uma coxinha garantidamente gostosa ou deixar de comer por uma chance remota de saúde, a pergunta da maioria é ‘com ou sem pimenta?’.
É o caso do isolamento. São dezenas de brasileiros restritos para cada um que evita o contágio. Sem benefício aparente, fica difícil. Para uma medida dessas funcionar, Rose propõe soluções como multas, leis e pressão social, já que a motivação própria será pequena. Como fazemos obrigando o uso do cinto de segurança ou proibindo o cigarro, medidas aplicadas a muitos que beneficiam relativamente poucos”, sentencia o cientista.
Pode-se concluir, assim, que a situação só não é mais crítica por causa do isolamento, não “apesar dele”.
E, de resto, torcer para que, além de as bobagens ainda seguirem podendo ser ditas, a liberdade, a verdade e o autêntico espírito cristão se sobreponham ao obscurantismo e à morte – seja da democracia ou dos enfermos pela pandemia.