A premissa de que, sempre e indiscriminadamente, ser conservador é garantia de “ser do bem” não apenas pode ser eventualmente um equívoco como extremamente algo “do mal”.
O assunto para exemplificar esta verdade é “polêmico”, mas de debate público inadiável, infelizmente… E isto porque, sim, “revitimiza” mulheres – quando não “crianças”.
O assunto, diante da possibilidade de mais uma tragédia no país, é muito bem abordado por Celeste Leite dos Santos, presidente do Instituto Brasileiro de Atenção Integral e promotora de Justiça. Em artigo à imprensa nesta semana, ela sustenta:
“Numa afronta à opinião pública, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, em Brasília, aprovou proposta de emenda à Constituição (PEC) que proíbe o aborto no Brasil até em casos previstos na lei, como o estupro, por exemplo.
Tal projeto – que recebeu a alcunha de PEC dos Estupradores, não sem motivo — elimina qualquer resquício de liberdade de escolha de meninas e mulheres, em nosso país, de serem mães quando vítimas de abusadores / agressores.
Ainda que não se tenha consenso sobre este tema em nossa sociedade, nem fatos novos que justifiquem a volta da discussão de assunto infame, após ampla rejeição popular da iniciativa, fato é que, a questão em tela é mais séria e grave do que aparenta ser.
Ocorre que, hoje, o abortamento legal é permitido em casos de estupro, de risco de vida para a gestante, bem como quando é constatada a anencefalia do feto.
Com a proposta em discussão – caso siga adiante e se torne norma constitucional, o Brasil corre o risco de se equiparar a nações como Honduras, El Salvador, República Dominicana e Nicarágua, que incluem a proibição do aborto desde a concepção em suas Constituições.
Os números deste tipo de crime em nosso país são estarrecedores. O Brasil registrou, somente em 2023, um estupro a cada seis minutos – totalizando 83.898 casos, entre estupro e estupro de vulnerável, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Salta aos olhos o fato de que, 76% destas ocorrências correspondam a estupros de vulneráveis, ou seja, quando há conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menores de 14 anos, crianças, ou incapazes de consentir o sexo, seja por deficiência, falta de entendimento ou por enfermidade.
Se aprovada a iniciativa já chancelada pela CCJ, teremos, no Brasil, inegável banalização de outra modalidade de violência: a pedofilia. De conduta negativa e repugnante, o estuprador / agressor, de pedófilo, ainda passará a se denominar ‘pai’, e, assim, exercer papel socialmente aprovado em nosso meio – inclusive, balizado pelos direitos e por deveres decorrentes do poder da instituição familiar.
E, não menos importante: obrigar vítimas de um estupro, ou que se encontrem em situação de perigo de vida a serem mães acarreta a revitimização de meninas e de mulheres. Além do que, forçá-las a levar uma gravidez, uma gestação indesejada adiante traz impactos psicológicos graves e, muitas vezes, irreversíveis. Isso inclui traumas adicionais ao crime cometido, estigmatização e dificuldades de integração social.
Há de se considerar, ainda, que a criminalização do aborto em casos de estupro pode potencializar a realização de procedimentos clandestinos, resultando, consequentemente, em complicações médicas graves e até em morte.
Em síntese: o Brasil não precisa punir vítimas, mas, sim, desenvolver políticas públicas efetivas de prevenção, de apoio e de desvitimização previstas no Estatuto da Vítima (projeto de lei 3.890/2020). O texto está parado no Congresso Nacional desde maio de 2023, por falta de vontade de políticos em abraçar, discutir e aprovar a questão.
Não é possível mais que se alegue desconhecimento e ignorância face aos efeitos nefastos da PEC dos Estupradores – sinônimo de retrocesso, um absurdo jurídico e inconstitucional, uma vez que é divorciado do que prevê nossa Carta Magna.
Aliás, o Brasil é signatário de diversos tratados internacionais de proteção aos direitos reprodutivos das mulheres. Logo, qualquer tentativa de criminalizar as hipóteses de aborto legal será um verdadeiro declínio em matéria dos direitos humanos fundamentais e da dignidade de mulheres e de meninas do nosso país.”
Os argumentos são cristalinos, denotando possibilidade de mais retrocesso civilizacional – reforçando, por óbvio e claramente, que não se defende aborto por princípio, muito menos como método contraceptivo…
O problema é muito mais profundo e sério por várias questões, entre as quais o de que, tratar estuprador como “pai”, além de uma excrescência, do ponto de vista da mulher estuprada, chega a ser desumano, cruel, até sádico…
Por sua vez, considerando o aspecto de afloramento cada vez mais saliente da obscuridade do ser humano nos tempos recentes, do lado “animal” de cada um, é importante atenção a outros dados, que devem complementar a devida reflexão sobre as injustiças cometidas contra as mulheres.
Também nesta semana, a Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime divulgou estudo informando que, em 2023, 140 mulheres e meninas foram mortas “por hora” no mundo, o que equivale a uma a cada dez minutos, todos os dias!
E segue o relatório “Feminicídios em 2023”, indicando que 58% das mulheres mortas nas Américas são assassinadas dentro do ambiente doméstico, vítimas de seus parceiros.
No Brasil, quase 17 milhões de mulheres já viveram ou vivem em situação de risco de feminicídio, aponta uma pesquisa recém-divulgada pelo Instituto Patrícia Galvão e Consulting Brasil, apoiada pelo Ministério das Mulheres.
Segundo a advogada Beatriz Daguer, do escritório Strozzi, Daguer e Calixto, neste ano, “mudanças importantes” foram realizadas no sistema de proteção e prevenção à violência de gênero no país.
“A Lei número 14.994/24 foi sancionada em outubro deste ano, e com isso várias alterações foram contempladas com relação a crimes cometidos contra mulheres por razão do sexo feminino, que valem para condição do sexo feminino quando envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo à condição da mulher. Estamos falando de um avanço na legislação brasileira diante dos números alarmantes”, diz ela.
O feminicídio passou de “circunstância qualificadora” do homicídio para se tornar delito autônomo, com pena mínima de 20 anos e máxima de 40 anos, “a mais alta já prevista em uma norma”.
Conforme explica a especialista, existem situações específicas que podem aumentar a pena de feminicídio de um terço até metade.
“O aumento da pena pode ocorrer caso o crime seja cometido durante a gestação, nos três meses posteriores ao parto ou se a vítima é mãe ou responsável por criança ou pessoa com deficiência, ou cometido contra menor de 14 anos, maior de 17 com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental.
Na presença de descendente ou ascendente da vítima, em caso de descumprimento de medidas protetivas de urgência ou em situações já previstas para crime de homicídio”, finaliza Daguer.
Ou seja, pelo que se observa, concluindo de maneira simples – senão simplória -, há mesmo um embate entre “o bem” e “o mal”. O problema está na confusão de se identificar esses extremos. Portanto, é torcer para que, em algum momento, a obscuridade realmente dê lugar à luz.
Que diarréia mental !