PEC da Blindagem pela “família” superunida

Poderia ser apenas um novo escárnio quase cômico na política nacional, mas, não: a chamada “PEC da Impunidade” é mais um trágico retrocesso no Estado democrático de direito no Brasil.

Na prática, ela quer permitir uma clara divisão entre o povo de um lado, sujeito às leis, e os parlamentares federais de outro, com suas próprias regras, escandalosamente generosas e lenientes a eles mesmos, garantindo-lhes uma plena impunidade.

Essa impunidade, inclusive, pode incluir qualquer crime, como no caso – em exemplo extremo – da ex-deputada Flordelis, acusada de ter mandado assassinar o marido e que poderia sair impune, caso tivesse um bom relacionamento (com os pares da Casa, a Legislativa, no caso…).

Tentar – ou futuramente dar – golpe de estado, então, nem se fala… Seria algo, muito longe dos tribunais, a ser comemorado em micareta de milicianos pelas ruas do país (sob bandeiras não mais de algum país imperialista, mas já escalando para a suástica, talvez…).

Interessante, não obstante, irônico, é que justamente esse parlamento foi eleito com o discurso de “família”, “anticorrupção”, “conservadorismo”…

Bacana, não, pessoal? No entendimento dessa gente, não há nada de corrupto em se prevenir de punições para o mal uso de dinheiro público por meio de recursos do “orçamento secreto”, por exemplo?

Já o aspecto “familiar”, quem sabe tivesse a ver com a “família deles”, dos eleitos quase de uma “divindade jurídica toda legal”, a garantir-lhes a farra das gordas emendas parlamentares e demais privilégios sem quaisquer denúncias. É essa a família que se queria para o Brasil?

Como “quase” já dizia a música do Dudu Nobre: “Essa família é muito unida / E também muito ouriçada / Brigam por qualquer razão” – só que agora não querem nem mais pedir perdão (tampouco passear de camburão)!

E quanto ao conservadorismo, hein? Não precisa queimar o Tico, somente com o Teco é possível reconhecer as reais intenções: conservar o que há de ruim, não de bom conquistado pela democracia no Brasil, após tanto custo e sacrifício…

É conservar “privilégios”, algo que o povão não tem…; é conservar a concentração de renda nas mãos de poucos, deixando o povão com seus equilíbrios financeiros, entre maços de carnês, para fechar o mês; é conservar os melhores empregos e estudos para suas proles, deixando para os filhos do povão os chãos de fábrica e, no máximo, os cursinhos técnicos para preencher vagas “exigidas pelo mercado”…

Mais irônico que isso, só a realidade de que esse Congresso Nacional – talvez o mais desqualificado, debochado e sem pudores da história – foi eleito por esse mesmo povão, que se absteve de olhar para si mesmo – e para o noticiário sério – e votou drasticamente enganado por fake news de rede social.

Mas, enfim, pode piorar? Com certeza! Basta esse pessoal conseguir passar a ideia de que crime não seria mais punido no Brasil… Pelo menos não aqueles que prejudicam a todos de uma vez, senão somente os cometidos pelo marginalzinho da esquina…

Mas, para somarmos mais opiniões sobre momento e situação tão sérios, encerremos com as observações de Marcelo Aith, advogado criminalista, doutorando em Estado de Derecho y Gobernanza Global pela Universidad de Salamanca (ESP):

“Tramita na Câmara dos Deputados a chamada ‘PEC da Blindagem’, proposta que reacende um dos debates mais delicados da democracia brasileira: o alcance do foro privilegiado e os limites da imunidade parlamentar. A iniciativa, ao alterar dispositivos da Constituição Federal, amplia o rol de autoridades com prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal (STF) e cria novas barreiras para a prisão e o processamento de parlamentares.

O texto da Constituição é claro. O artigo 102 estabelece que cabe ao STF processar e julgar, nas infrações penais comuns, apenas as mais altas autoridades da República: o presidente e o vice-presidente, os membros do Congresso, os ministros da Corte e o procurador-geral da República. A lógica sempre foi a de restringir o foro a situações em que o exercício da função institucional pudesse ser comprometido. Nos últimos anos, inclusive, a interpretação do Supremo caminhou no sentido de limitar o alcance dessa prerrogativa, restringindo-a a crimes cometidos durante o mandato e relacionados ao exercício da função. O movimento foi visto como um freio à impunidade que historicamente marcou a elite política.

A PEC, no entanto, inverte esse curso. Além de incluir os presidentes nacionais de partidos políticos com representação na Câmara no rol de autoridades com foro privilegiado — um grupo que exerce influência decisiva no sistema político, mas que não detém mandato popular —, a proposta reforça amarras institucionais que tornam ainda mais difícil a responsabilização penal de parlamentares.

Entre os pontos mais controversos, estão a exigência de licença prévia da Casa legislativa para que um parlamentar seja processado criminalmente, a deliberação em votação secreta em até 90 dias por maioria absoluta, a suspensão da prescrição caso a licença seja negada, prorrogando o escudo de proteção enquanto durar o mandato, e a necessidade de decisão da Casa em até 24 horas para validar a prisão em flagrante.

Não é coincidência que a PEC surja em meio a um ambiente de polarização e desgaste da relação entre Legislativo e Judiciário. Em um momento em que ex-presidentes, governadores e líderes partidários enfrentam condenações ou investigações, a blindagem surge como resposta corporativa. O discurso oficial é o da proteção contra perseguições judiciais. Mas é impossível dissociar a proposta do cálculo político imediato: reduzir a vulnerabilidade de atores centrais do Congresso e dos partidos às decisões do Supremo, em um cenário de crescente judicialização da política.

Aprovada, a PEC representaria uma ruptura em relação ao espírito republicano da Constituição Federal de 1988. Se o princípio consagrado no artigo 5º garante que ‘todos são iguais perante a lei’, a ampliação do foro e a exigência de licença parlamentar para processar membros do Congresso produzem o efeito oposto: consolidam um regime de desigualdade jurídica entre cidadãos comuns e políticos profissionais. O impacto simbólico também é profundo.

Importante ressaltar que em um país marcado por crises de confiança nas instituições, a aprovação da PEC da Blindagem reforçaria a percepção de que a lei se aplica seletivamente, alimentando o sentimento de descrença na política representativa.

O Congresso tem, diante de si, uma escolha que transcende conveniências momentâneas. Pode optar por reforçar um sistema de responsabilização capaz de recuperar a confiança social ou pode recuar para a lógica da autoproteção, ampliando o fosso entre representantes e representados.

Assim, a Câmara dirá se a Constituição continua sendo o pacto que limita privilégios e assegura direitos ou se se transformará em um instrumento para blindar aqueles que deveriam ser os primeiros a prestar contas à sociedade.”

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