Os operamaní­acos estão chegando





A Orquestra Sinfônica do Conservatório de Tatuí encerrou a temporada de 2014 no dia 19 de dezembro, na Igreja da Matriz, com a apresentação da excelente soprano Angelica de la Riva, já conhecida do público da região e do país, tendo como regente o nosso competente maestro João Maurício Galindo. Foi uma performance variada e aplaudidíssima, que terminou com Stille Nacht, do austríaco Franz Gruber (1787-1863), com direito à última parte cantada em português: “Noite Feliz”. Ao final, fui ao corredor lateral para cumprimentar solista e maestro pelo belo presente de Natal, aberto ao público que quisesse ouvir a soprano. Ali mesmo, posamos para fotos ao lado do senhor e senhora Fernando de la Riva, pais de Angelica, e retomei a conversa já começada antes da apresentação com “papá” de la Riva, que não se cansava, claro, de tecer orgulhosos comentários sobre as performances da filha e as histórias dela no Lincoln Center e Carnegie Hall. (Aliás, um único minuto filmado com meu celular, o último trecho de “Stille Nacht” em alemão, encerrando com “Noite Feliz”, em português, foi reproduzido como “meme” às centenas e compartilhado nas redes sociais tantas outras vezes: foi oferecido por muitos como presente de Natal e até de Ano Novo!).

Continuei a conversa com o senhor de la Riva sobre ópera, Callas, sopranos spinto e coloratura, Metropolitan Opera House, La Scala e por aí vai. Foi então que o maestro João Maurício disse: esses aficionados por ópera são terríveis: entendem muito mais do que nós, músicos! Pura verdade. Eles passaram boa parte da vida cantarolando junto com os bolachões 78 rpm, vinis e agora CDs, colecionaram todos os discos da Maria Callas, Renata Tebaldi, Placido Domingo. São capazes de pagar alto por algum exemplar raro, e, se podem dispor desse luxo, vão à Europa ou aos EUA para assistir a récitas líricas nos melhores auditórios.

No Brasil, uma temporada oficial de oito, dez títulos já é muito boa – exceção feita à Ópera da Amazonas Filarmônica, dirigida pelo competente e também aficionado maestro Luiz Fernando Malheiro, que transformou Manaus em um grande centro de óperas no país. Ele também atua em uma organização social nossa coirmã, o Teatro São Pedro, onde, devido às dimensões um pouco reduzidas da casa, apresenta títulos compatíveis com as condições, geralmente óperas mais simples e de menor duração. Mas nosso país foi bem diferente no passado: em 1941, era regente titular do Theatro Municipal de São Paulo o maestro Armando Belardi, e, conforme um programa da temporada daquele ano, foram executados nada menos do que 21 títulos diferentes de óperas – se bem que em sua maioria nada de grande complexidade -, o que a três ou quatro récitas por cada título, podemos pensar em mais de 70 apresentações, com casa lotada, claro, pois a tradição do canto lírico já era cultuada em São Paulo bem antes da construção do Theatro Municipal.

Na Europa e nos EUA, há clubes desses operamaníacos e sei que em um deles, em NY, dão-se ao luxo de casar apostas sobre a mesa e logo depois alguém colocar um LP no toca-discos, para ver quem adivinharia primeiro quem seria a “diva” (deusa, na mitologia grega, palavra com que os amantes da ópera se referem às grandes estrelas do belcanto). Em poucos segundos, um deles já batia com a mão na mesa após as primeiras notas e cravava certo o nome da cantora – às vezes, até o disco e o ano da gravação. Com direito a embolsar os dólares apostados.

Há coisa de uns 15 anos, em São Paulo, fiz dois amigos nos cafés da manhã de domingo. Começávamos geralmente na padaria Amarante, na vila Mariana, e às vezes terminávamos com um almoço com vinho no Brazeiro, ali bem perto. Chamavam-se Serjão (só o conheci pelo apelido), já passado dos 70 e aposentado da Assembleia Legislativa, e Luís Oricchio, já perto dos 80. Eram meus grandes amigos de conversas sobre ópera e política, e com eles aprendi sobre as temporadas de ouro – 1950 e 1951 – do Municipal de São Paulo e as grandes estrelas de todos os tempos: Callas, Tebaldi, Del Monaco, Gigli e Caruso, sobre quem discorriam entusiasmadamente com a mesma facilidade com que torcedores falam sobre os grandes jogadores de futebol. Discutiam as melhores performances de “Turandot”, “Norma”, “Tristão e Isolda”, “Carmen” e “Traviata”. Vida passada entre estudos e sinfônicas, longe dessa cultura de passar os dias a ouvir ópera após ópera, eu ouvia mais do que falava, e ia aprendendo.

Descobri que Oricchio teve um namorico adolescente com a filha do zelador do Municipal de SP (depois professora de piano), que havia sido o mestre de obras da construção no início do século 20, e com esse amigo o assunto foi ópera até seus últimos dias. Na casa dele, já bem enfraquecido por um câncer terminal, pele e osso, os braços magros deixavam pendurado o relógio que tanto adorava: a doença ia levando sua vida, a corrente de ouro já com bastante folga, mas a memória firme. A esposa aproveitava para fazer compras, e ficávamos papeando sobre música, ouvindo alguma coisa e conversando: ele e eu, aprendiz do mundo da ópera. Cheguei a gravar com ele algumas conversas que poderiam servir-me de material para um projeto que pretendia escrever.

Há em Tatuí ao menos um dos sérios cultores do gênero, o advogado Lincoln, que aliás estava presente na Igreja da Matriz, mas nunca nos aprofundamos nessas conversas. Existem deles em toda parte. Leitor amigo, músico, estudante, ao se encontrar com um operamaníaco você vai estar falando com quem entende do riscado. Aproveite.