Por estar imerso dias inteiros no pensamento musical, no trabalho artesanal diário intensivo, no almoçar, jantar e dormir música, o artista se deixa envolver tanto que às vezes perde o tino da realidade, de seu lugar no mundo e até do tempo. Claro é que, quase intoxicada pela música, como aliás acontece em muitas outras artes, a introspecção vira neurose com extrema facilidade, já que é tênue a linha divisória entre uma e outra. Lembro-me de uma gravura do escritório de meu pai que retratava Cervantes, sobre quem sobrevoavam as fantasias do escritor castelhano, seu Quixote, Sancho e outros de seus personagens, a atormentá-lo entre livros e papeis. Embaixo, a frase reveladora: “Embebeu-se tanto na leitura que passava as noites em claro”. E lá estava Cervantes, largado sobre uma poltrona, embriagado pelos volumes, tomos, fantasias e fantasmas.
Para encurtar o título deste artigo, usei hobby, mas poderia incluir “outra ocupação” ou “outra profissão”. Clarice Lispector, das letras como Cervantes, pintava para fazer transbordar um pouco a inteligência e cultura enormes que sobrecarregavam sua mente. Outro escritor, também amigo de meu pai, Lúcio Cardoso, autor da “Crônica da Casa Assassinada” (1958), subjetivista como Clarice, foi vítima de um AVC e, como ela, gostava de pintar. Lembro-me de ter ido com meu pai um dia visitá-lo, e, ainda adolescente, fiquei estarrecido ao vê-lo criar uma tela com um pincel entre os dedos dos pés, molhando-o nas tintas da palheta e criando, pela dificuldade de controle do pincel, cenas com jeito de Van Gogh. Ele apenas precisou trocar o meio de expressar em arte sua visão do mundo. O irlandês George Bernard Shaw (1856-1950), mestre do teatro, também dividia seu tempo como ensaísta e crítico musical, área em que era um analista de mão cheia.
Grandes compositores, como Robert Schumann (1810-1856), Hector Berlioz (1803-1869) e Richard Wagner (1813-1883), dividiam o dom da arte da escrita. Schumann, autor de quatro importantes sinfonias e um vasto repertório de canções (os “Lieder”) para piano, também escrevia. Diagnosticado psicótico, assumia seu comportamento bipolar e claramente esquizoide: ora escrevia como Florestan, seu lado apaixonado e volúvel, ora como Eusebius, o sonhador austero, voltado para si mesmo. Berlioz, aos 12, aprendeu latim, a ponto de fazer uma tradução precoce de Virgílio, com revisão de seu pai. E Wagner, autor da monumental ópera “Tristão e Isolda”, apaixonado pela literatura de Goethe, e admirado por Nietzsche, escrevia textos com a mesma intricada técnica de suas composições, deixando uma obra polêmica, “O Judaísmo na Música”, entre numerosos artigos e livros.
Olivier Messiaen (1908-1992), importante compositor francês do século 20, é autor, entre outros, do fabuloso “Quarteto para Fim do Tempo”, foi capturado pelas tropas nazistas em 1940 e levado ao campo de concentração Stalag VIII, na Polônia. Com a complacência de um oficial amante da música, compôs uma peça para os três instrumentistas aprisionados, acrescentando depois um piano. Mas havia um outro lado, o bucólico, o lírico do compositor: o do ornitólogo estudiosíssimo, e seus pássaros devem ter-lhe feito muita falta nas agruras de Stalag.
Marcos Szpilman (falecido em 2011), médico, também tinha paixão pela música, despertada desde criança no violino, e fundou a lendária Rio Jazz Orchestra, que liderava com seu saxofone. E há os que nunca ou quase nunca exerceram suas profissões de advogado: o querido amigo compositor Osvaldo Lacerda, o tenor Jarbas Braga, o celebrado professor Dante Cavalheiro e até Noel Rosa, formado médico. Graduaram-se por imposição paterna, costume da época, ou simplesmente caíram de amores pela música largando a carreira.
O saxofone também é um instrumento muito querido por outros profissionais, a exemplo do Szpilman. Tive um cardiologista em São Paulo que deixava seu instrumento no consultório. Esperava fechar a clínica na vila Clementino, em São Paulo, para tocar – a esposa dele não era muito chegada ao som que ele extraía. Certo dia, uma emissora de TV quis fazer uma matéria sobre músicos amadores, e eu pensei nele. Gravou com algumas guinchadas e harmônicos fora de hora, mas no caso isso não era relevante.
Grande exemplo foi o físico Albert Einstein (1879-1955), um dos maiores de todos os tempos. “O que posso dizer sobre a obra de Bach? Nada. Ouvir, tocar, amá-la. E ficar calado”, disse ele. Aficionado do compositor alemão, tinha predileção pela sua obra para violino. E tocava Bach e Mozart com uma técnica básica para um amador, mas conseguia exprimir seus sentimentos com paixão. Nos momentos de exaustão de seus cálculos, teorias e investigações científicas, buscava na música um apoio especial – quem sabe, daí, não surgiram nesses momentos suas elucubrações sobre a relatividade e as equações de campo?
Entregar-se de corpo e alma à música é muito bom, mas também é uma opção saudável fazer outra atividade, como culinária, jardinagem, ou escrever. Ter um ponto de diversificação, um derivativo, que talvez dê ao artista a alternativa de imersão aqui e ali, e não de total submersão. E aos que trabalham com outra profissão, a música pode ser um valiosíssimo passo nesse caminho da vida. Portanto, se ainda lhe resta a velha ideia de que música não é exatamente uma profissão – a realidade hoje mudou! -, ao menos ajude seus filhos a serem mais sensíveis, abrindo-lhes a inteligência para o caminho que porventura escolherem, músicos ou não.