Uma determinação do governo do Estado tem rendido preocupação entre os defensores da chamada “liberdade de expressão” – se é que isto, efetivamente, algum dia existiu, existe ou existirá… Por decreto, o governo de São Paulo determinou sigilo de “50 anos” para alguns dados dos boletins de ocorrência registrados pela polícia.
Durante esse período de meio século, deve ser escondido o “histórico de registro digital de ocorrência e boletim eletrônico de ocorrência, quando não for possível a proteção dos dados pessoais dos envolvidos e testemunhas”.
Na visão do mestre em direito penal pela PUC-SP, Euro Bento Maciel Filho, a atitude do governo paulista “demonstra falta de transparência”.
“A quem interessa o sigilo dos registros policiais decretados pelo governo do Estado recentemente? Com toda a certeza, não é à sociedade. Afinal, na época da transparência, da divulgação ampla e irrestrita das informações e da liberdade de atuação da imprensa, não há o menor sentido em se restringir o acesso aos dados de boletins de ocorrência registrados pela Polícia Civil. É um paradoxo absolutamente inexplicável”, argumentou ele, em nota divulgada à imprensa.
O especialista, também sócio do escritório Euro Filho Advogados Associados, acrescenta que “já não é de hoje que os dados estatísticos da criminalidade divulgados pela Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo vêm recebendo críticas e sendo alvo de desconfiança”.
“Curiosamente, para resolver o problema, ao invés de conferir mais transparência ao processo de apuração e levantamento dos números divulgados, o governo entendeu por bem limitar o acesso à informação, já que decretou o sigilo dos dados dos boletins de ocorrência”, segue.
“Com tal medida, torna-se ainda mais difícil confrontar a estatística oficial dada à sociedade com a efetiva realidade dos números da violência que ocorre nas vielas e nas ruas”, concluiu.
Em razão da polêmica, o governo se manifestou, também em nota, ressaltando que “a resolução SSP 7/2016 fixou como regra o amplo acesso aos boletins de ocorrência, resguardando somente os dados pessoais de vítimas e testemunhas de maneira a preservar suas intimidades, como determina a legislação, que também resguarda a informação no caso de sigilo decretado pela autoridade policial ou judicial”.
E segue: “A SSP criou novo sistema para fornecer ao solicitante um extrato do registro de ocorrência, com o número do BO, o distrito policial, o local e data e o histórico da ocorrência, que estarão à disposição de reportagens e pesquisas acadêmicas sobre criminalidade”.
“A partir de agora, São Paulo é o único Estado brasileiro a divulgar números de efetivo policial, dados e históricos de boletins de ocorrência, entre outras informações de interesse público, que possibilitarão que a sociedade e a imprensa tenham mais informações para cobrir o trabalho policial”.
“O Estado de São Paulo ampliou a transparência dos dados de interesse público e a preservação dos dados pessoais, como determina a Constituição Federal e a legislação”, conclui a nota.
Como se observa, os discursos não correspondem, e somente a prática desse novo “modelo” poderá – ou não – minimizar a preocupação quanto à possibilidade de censura no Estado.
Na prática, vez que o decreto vislumbra esse direito, as delegacias poderiam ter a oportunidade de camuflar as ocorrências sem sequer correrem o risco de colocar suas autoridades responsáveis na condição de censores, em “flagrante” condição de abuso de poder e em afronta à democracia, a qual, por sua vez, não existe de verdade sem liberdade de informação.
A pretexto, então, de resguardar o “direito à intimidade”, agora, a autoridade poderia simplesmente responder que cumpre ordens do governo e pronto: a criminalidade seria levada a público somente pelos “frios” números das estatísticas não raro questionadas da SSP.
Na melhor das hipóteses, por mais que não exista má intenção na medida – ainda que seja derivada da proposta de “proteger” a intimidade de eventuais acusados injustamente -, não há como ignorar a impressão de que, diante da incapacidade de se revolver os problemas, melhor varrê-los para baixo da omissão.
Aliás, essa eterna impressão de descompromisso não necessariamente com a “verdade”, mas com a “prestação de contas” à população que o governo estadual sustenta é algo francamente negativo, aproximando-se muito à soberba de quem não aceita admitir erros.
Por este aspecto, algo em comum à administração federal, que leva a galopes inflacionários o país em direção ao caos, mas que nem por isso admite erros na política econômica.
Neste sentido, não deixa de ser, até, falta de senso de oportunidade do governo paulista, que bem poderia apostar na absoluta e inquestionável transparência em todas as suas áreas de atuação – mesmo nas que enfrenta dificuldades – justamente para ganhar a plena confiança da população e, por consequência, as próximas eleições presidenciais.
Mas, não. A julgar-se por esses governos aparentemente mais comprometidos com suas próprias soberanias exacerbadas e indevidas que com a democracia, o Brasil ainda vai demorar muito a sair da obscuridade, senão econômica, certamente política.