Léo Rosa de Andrade *
Que me lembro sobre negritude olhando a vida de hoje para trás dos meus quase 70 anos? Feitas as contas, no mais, não são coisas de lembrar com muita satisfação, ainda que sejam fatos, digamos, normais.
O mais fundo da minha memória acessível me traz o seu Américo, um homem enorme, cabelos brancos, idoso. Creio que foi a primeira pessoa negra que vi. Não digo conheci porque nunca tive proximidade com ele.
Sua casa era retirada da rua geral do lugar em que eu morava, Vila Nova, bairro de Imbituba, SC, então uma pequena localidade de origem açoriana que mantinha o uso corrente de um português meio arcaico.
Era um “encruzo”, ponto necessário de trânsito para quem fosse para cima ou para baixo do Brasil, mas permanecia açoriana em muitos hábitos, incluindo as marcas de espanholismo, como bassora, bamo pra riba etc.
Américo era dito filho de escravos. Seria crível? Seria. Minha memória vai a 1959. Supondo que contava 60 anos, teria nascido em 1899. Como a abolição formal da escravatura deu-se em 1888, é perfeitamente possível.
Uma anotação necessária: o termo mais adequado é escravizado, eu sei, mas, não se o usava. Aliás, interessante, escravizado é um termo em construção: denuncia uma situação de força, um estado à revelia da vítima.
Dos muitos olhares que dirigi à casa do respeitável seu Américo, um único me ficou registrado: aquele senhor forte estava em pé, às voltas com algo que lhe ocupava as mãos; da sua família, não me recordo de ninguém.
Algum tempo depois outra família negra veio para a localidade. Se me lembro, oriunda do Rio de Janeiro. Recordo que falavam de outro jeito. Eu gostava de escutá-los. Não registro qualquer comentário à sua chegada.
Um primo meu um pouco mais velho que eu, vindo “da cidade”, por alguma razão estava em minha casa. Essa família referida também hospedava um rapaz, sobrinho seu, com idade próxima à do meu primo.
Eu apreciava já o sotaque de todos e acrescentei admiração ao jeito do moço andar. Era diferente. Bem, um dia ele passou. O meu primo disse baixo: chama de picolé de asfalto. Pois aconteceu, eu chamei.
Em minha defesa, esclareço: eu não sabia o que era asfalto. Contra mim, eu confesso: intui que era maldade. Racismo estrutural. Estrutural, Aurélio: “Que forma ou constitui a estrutura; que é fundamental, intrínseco”.
Vícios estruturais, como o machismo ou o racismo, não são escolhidos pela pessoa. A pessoa é alcançada pelo preconceito. A coisa compõe a cultura. Num primeiro momento não há hipótese de deliberação.
A mim, nunca me ocorrera raça. Jamais pensara em distinção. Nada. Mas entendi tudo quando me veio o olhar de raiva e tristeza do moço que tinha fala cantada e andar dançado. Bem pensado, um olhar de amargura.
Sem entender nada, entendi tudo. Eu fizera o que não devia ter feito. De graça, ofendi intensamente alguém. Não sabia o que fazer. Sei que senti vergonha. Aquilo ficou comigo por algum tempo. Depois esqueci.
Numa ocasião, viagem a Porto Alegre. Era tudo estrada de terra batida. A certa altura, já chegando ao destino, alguém disse: vai começar o asfalto. Começou. O asfalto era preto. O acontecimento voltou e eu o entendi.
Pedir desculpas? A quem? Alivia-me saber que me bastou essa ignomínia para, de mim para comigo, percebê-la e com ela aprender. Não publico este texto com nenhum orgulho, mas por dever de admissão: eu errei.
* Doutor em Direito pela UFSC.Psicanalista e jornalista.