O Brasil tem assistido a inúmeras demonstrações sobre a crise econômico-política que se abateu sobre o país como foi o lamaçal derramado com o rompimento da barreira da Samarco. É preciso ler os jornais diariamente, assistir aos noticiários com atenção, conversar com amigos, vizinhos e colegas de trabalho, toda informação é pouca. A escalada nos impostos, nos juros, a queda no PIB e na Bolsa de Valores, a alta nas moedas estrangeiras, o quebra-quebra de indústrias e construtoras, da cadeia de empregos, o tombo na renda familiar, enfim, tudo aquilo que vem fazer contraste com outro prato da balança, um verdadeiro tsunami que foi a relação direta entre empresários, políticos, empreiteiras e paraísos fiscais nesses últimos anos, fatos que mesmo escancarados são apenas parte do que nós sabemos.
Claro que não vou me aventurar a “chover no molhado”, tentando me aprofundar na parte econômica sobre a qual não tenho alguma informação, por mais diminuta que seja, que possa acrescentar ao que profissionais da Polícia Federal, do Ministério Público, da Justiça Federal, tribunais superiores e imprensa dispõem. Nesse caso, tornamo-nos observadores e críticos, espectadores diários de uma cena da qual não conheço precedentes, entre todas as crises por que passamos nas últimas décadas.
Volto-me ao nosso próprio microcosmos, para verificar como os fatos e a dura realidade econômica, com suas consequências imediatas que, apesar de singulares, são bem palpáveis. Não tenho estudos de anos anteriores para efeito de comparação para o que vou expor, mas tendo sentido como a realidade afetou o Conservatório este ano, pedi um levantamento de dados não sobre a procura por vagas, que sempre foi e deverá ser grande, mas nas razões da chamada evasão, ou abandono de cursos, que alcançou 267 alunos, ou 11,6%, número até baixo para uma escola livre de crianças a adolescentes e adultos. Há quatro anos, a “Veja” (13/05/2012) publicou matéria sobre evasões em cursos universitários, cujo título era “Evasão da USP Leste chega a 37%” – isso, para alunos determinados a se formarem para seguir a carreira pela qual optaram decididamente no exame vestibular. Mas os reflexos da atual crise são imediatos do lado qualitativo, bastando desconsiderar nesse universo os que saíram para ingressar em faculdades e universidades (12,9%), o que é ótimo, e procedimentos cirúrgicos e tratamentos em geral (3,22%). Excetuamos também, nessa pesquisa, ligações telefônicas não completadas, entre os que não atenderam ou foram constatados números incorretos (25,8%), ainda restou um grupo razoável (74,2%) que nos forneceram dados qualitativos sobre trancamentos e abandonos: 45,19% saíram por necessidade de trabalho, em grande parte para ajudar no sustento familiar, dadas as dificuldades financeiras atuais, perda de emprego ou de renda ou falta de serviço para seu sustento, 3,22%, somam-se ao percentual anterior, de 45,19%, perfazendo 48,41% das saídas de alunos regulares. Apenas 3,22% saíram sem mais explicações. Arredondando para simplificar, quase metade dos abandonos e evasões se deram por motivos econômicos, aparentemente de forma exclusiva.
Claro que sentimos de perto os efeitos da crise quando os sintomas afetam a inflação particular de cada um – filhos, escola, transporte, combustíveis, aluguel, vestuário, saúde, remédios, alimentação – que sempre ultrapassam os índices oficiais, como o IPCA e outros. Isso, sem falar nos cortes em toda forma de lazer – cinema, viagens, etc. -, tudo compondo o retrato fiel dessa “inflação particular”. E não é verdade o que disse um economista, bem lá atrás, ainda durante a ditadura, cujo nome infelizmente não me ocorre: “A única coisa que sobe igual ao índice de inflação é o índice de inflação”? (E o genial Millôr Fernandes, sobre os mistérios da nossa economia: “O trabalhador ganha cada vez menos para produzir coisas que vão custar cada vez mais”).
Que há candidatos às vagas do Conservatório em grande número, sim, há. Mas o que se pode medir, aqui, é a dificuldade de dedicar-se à música por parte de um público seleto de crianças, adolescentes e jovens, em sua quase totalidade, sujeito às tormentas que assolam suas vidas familiares. E é um público que se pode dizer bastante vulnerável, de classe média a média baixa (grande maioria) até os mais pobres, que sonham, com seus familiares, com um lugar ao sol onde possam sobreviver com seu talento em um mercado que não há de se fechar tão cedo: ouve-se música independentemente de crise, local, gênero, estilo e outros fatores, seja no rádio, na TV, nos carros, nos celulares, nas ruas, sem entrar no mérito da qualidade ou apreciações estéticas e de outras naturezas.
Simplesmente não se vive sem música. Não foi à toa que o grande filósofo alemão Nietzsche (1844-1900) criou aquela frase que se tornou famosa: “Sem música, a vida seria um engano”. (Aqui aproveito para tratar do equívoco da tradução feita para o português a partir da versão em inglês do original alemão “Ohne Musik wäre das Leben ein Irrtum”: “without music life would be a mistake”. Esse “erro”, em português, seria mais como uma acepção que mestre Houaiss dispõe para o verbo errar: “andar errando, andar de um lado para o outro, vaguear”. Em inglês, o correto seria “err”).
Pois enquanto erramos por aí, vagando a esmo neste país, esperando a cura para todos os males, melhor ficarmos com o velho pensador: “Sem música…”