Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza *
Em 1515, navegadores portugueses presentearam o rei Dom Manuel com um animal quase desconhecido na Europa. A novidade causou sensação. O robusto unicórnio indiano foi referido em crônicas históricas, livros de memória e poemas. Enviado ao papa, desapareceu em um naufrágio na costa de Spezia, onde séculos depois se afogaria o poeta romântico Percy Shelley (1792-1822).
O mais importante registro do “Rhinocervs” foi a xilogravura de Albrecht Dürer (1471-1528), hoje exposta no British Museum. Ali vemos uma fera, com agressividade mal contida pela moldura, mas sobretudo envolta por uma armadura natural, que a torna invulnerável, insensível.
A metáfora ecoou no século 20. No clássico “E la Nave Va” (1983), Federico Fellini (1920-1993) apresenta um cruzeiro de insensatos personagens, que viajam em 1914 para lançar ao mar as cinzas de uma cantora lírica.
A certo ponto, o navio recolhe refugiados sérvios da primeira grande guerra, somente para entregá-los, insensivelmente, a um canhoneiro das tropas austro-húngaras.
A película finaliza com um naufrágio do qual escapam em um bote um jornalista e um rinoceronte fêmea. A imagem, como se vê, precede em muito a plástica hollywoodiana das “Aventuras de Pi” (2012) – descarado plágio de um romance de Moacyr Scliar (1937-2011). Talvez Fellini nos faça um alerta. O rinoceronte de Drürer sobreviveu, seu leite nos alimenta.
Ainda mais emblemática é a peça de Eugene Ionesco (1909-1994), “O Rinoceronte”, encenada pela primeira vez em 1959. Narra-se nela uma peste que transforma os habitantes de uma pequena cidade em feras.
À aparição dos primeiros animais, os cidadãos se perdem em discussões inúteis (“Serão africanos ou asiáticos? Os focinhos têm um ou dois chifres?”).
Com a progressão das metamorfoses, passam da negação (“os médicos inventam doenças”) às teorias conspiratórias (“eu sei o porquê das coisas… hei de desmascarar os provocadores!”); da aceitação (“o que há de mais natural que um rinoceronte?”) à adesão completa (“o dever me chama para junto dos meus chefes”).
Ao fim, multidões colaboram para esgotar as forças dos poucos resistentes. A atração do poder em estado bruto é irresistível.
Os paralelismos com a pandemia são tão óbvios que dispensariam mais comentários. Porém, vale a pena ressaltar, em meio à catástrofe global, o assustador embrutecimento dos aspectos mais nobres de nossa humanidade.
Quando menos, para não ecoarmos uma ex-ministra, veterana das telas, a pedir que deixemos de anunciar o morticínio, pois os brasileiros precisam de notícias boas. As boas-novas, segundo os rinocerontes, são abundantes em nosso país.
Caminhamos rapidamente para 300 mil mortes por Covid-19. Uma em cada quatro fatalidades é causada pela pandemia. Não parece haver muito o que comemorar. Mas estamos, em geral, anestesiados. Míopes e insensíveis demais para entender que, em epidemiologia, números significam vidas.
Parte de nós converteu sua pele em grosseira armadura contra a verdade dolorosa. Livramo-nos de sentimentos inconvenientes como empatia e solidariedade.
Pregamos a liberdade total, o direito de ir e vir e a razão do mais forte. Não é de admirar que nossas pesadas patas esmaguem os humildes, os indignos, os vulneráveis. Assim é a vida.
Obcecados pela lei da selva, protegendo com chifres nosso território, investimos com vigor contra aqueles que põem em dúvida verdades eternas, disponíveis nos templos e em lojas de departamento.
Rinocerontes em carreata, gritamos contra o isolamento social e a favor da seleção natural. Afinal, o pastor Malthus já dizia que as guerras e epidemias são necessárias ao controle numérico da população.
Há muita gente no mundo, precisamos de espaço em nossas savanas de concreto. Que sobrevivam os mais adaptados. Os que passeiam de helicóptero sobre as misérias cotidianas. Ou os que abarrotam as redes sociais com fotos em praias desertas, paradisíacas.
Se é possível dizer, de profundis, que há algo pior que o coronavírus, eu apontaria a pandemia de “rinocerite”. Não apenas a cegueira para o que é óbvio e o desprezo pelo outro, mas sobretudo a agressividade generalizada em discursos, lives e postagens na internet.
Para não mencionar os balidos dos Conselhos Federais de Rinocerontes, que pregam de forma incessante o direito à mentira clínica e à farsa sanitária.
Cercados pelas manadas, alguns retardatários teimam em se denominar Homo sapiens. Ouve-se à distância o grito do personagem Bérenger: “Contra todo mundo, eu me defenderei! Sou o último homem e ei de sê-lo até o fim! Não me rendo!”. A sensatez resiste em bunkers.
Que haja vida inteligente e sensível nos subsolos da pandemia, que existam muitos que recusam o apelo cômodo à desumanidade, é algo que me alenta.
Ouso dizer que ouço seus gritos, cada vez mais fortes, em favor da ciência, da saúde, da vida. Vejo diariamente sua luta pelo distanciamento social, pelo uso de máscaras e pela vacina. Rendo minha homenagem aos atuais Bérengers, com sua incurável esperança na humanidade.
* Presidente da Sociedade Paulista de Infectologia e professor da Faculdade de Medicina da Unesp, em Botucatu.