Nirvana: paraí­so ou inferno?





Do sânscrito “nirvã a”, nirvana é um conceito presente em várias religiões e filosofias, e em diversas línguas, como o pali, o bengali, o chinês, o japonês e outros. O significado da palavra é amplo, mas gira sempre em torno de salvação, liberação. Presente no budismo e nas religiões indianas, é o estado de libertação do ciclo humano: nascimento, vida e morte (reencarnação). Seria um estado imperturbável da mente, isolada de desejos e ódios: um estágio de contemplação descrito até na Bíblia Sagrada, conforme veremos adiante.

O estado contemplativo é velho conhecido dos antigos monges da Igreja Católica, como bem descrevem os exercícios espirituais de um anônimo monge beneditino inglês do século 14, em escritos dirigidos a iniciados: “The Cloud of Unknowing”, ou “a nuvem do desconhecimento” (publicado em português como ‘A Nuvem do Não Saber”). O autor cita textualmente o conhecido trecho do Evangelho segundo Lucas, 10, 38-40, em que Cristo se refere ao estado contemplativo de Maria, em contraste com a representação da vida terrena, na pessoa de Marta (“Maria escolheu a parte certa” disse Ele). A mãe de Cristo estava, segundo o evangelista, em estado contemplativo, desligada espiritualmente dos laços terrenos, sob a ausência de pensamentos. Muito antes disso, o 24° capítulo do “Êxodo” descreve Moisés recebendo um chamado divino, para que galgasse o caminho ao topo de uma montanha, onde foi encoberto por uma densa nuvem –  a do desconhecimento -, e ali ficou por ela envolto por seis dias, em estado de absoluta contemplação. Em 398 d.C., em suas confissões, Santo Agostinho também menciona a “nuvem”.

O brahman-nirvana é o encontro da liberação do ego humano com o deus supremo da existência, Brahman, em diversas passagens do “Baghavad Gita” que citam os ensinamentos de Krishna. O grande líder Mahatma Ghandi (1869-1948), exemplo de uma das maiores espiritualidades que conhecemos, foi o fundador do estado moderno da Índia e defensor do Satyagraha, a revolução pela não violência. Ele aponta diferenças de conceitos do nirvana entre religiões hinduístas:  para os budistas, seria o vazio (“shunyata”), enquanto no Baghavad Gita ele representa a paz divina, sendo por isso chamado brahman-nirvana. No Brahman-Kumaris, o nirvana seria o estado mais alto de três universos, onde fica a alma suprema, chamada Shiva. O termo nirvana vem de uma junção de três fonemas sânscritos (“ni”, distante, sem; “va”, um sopro como o do vento, o exalar de um perfume; e “na” carrega um sentido de negativa: nunca, não, nada).

Em 1987, formou-se em Aberdeen, estado de Washington, EUA, uma banda de rock, chamada Nirvana, liderada pelo cantor e guitarrista Kurt Cobain e o baixista Krist Novoselic. Tornou-se um dos mais importantes grupos de sua geração, arrebanhando fãs e admiradores em todo o mundo, um ícone como Guevara. O primeiro disco, “Smells Like Teen Spirit” (“cheira a espírito adolescente’”, fez algum sucesso. Mas logo depois, “Nevermind” (“não importa”), de 1991, popularizou de vez a banda como “porta-voz de uma geração”, até a tragédia: em 1994, aos 27 anos de idade, Cobain matou-se com um tiro na cabeça e uma grande quantidade de drogas no sangue. Ainda existem especulações quanto a esse fim, que comoveu milhões de seguidores de Cobain pelo mundo inteiro. A mãe dele, também compondo o retrato da tragédia, carregava as cinzas do filho quando escorregou com a pequena urna, no aeroporto de Heatrow, em Londres, esparramando parte do conteúdo para dentro do respiradouro da calefação. Cobain havia interpretado à sua maneira alucinada a filosofia do nirvana: “libertação da dor, do sofrimento e do mundo exterior”.

Em depoimentos, Cobain falou de seu relacionamento com a mulher, Cortney Love, também musicista, regado a um consumo sem limites de drogas de todos os tipos, do LSD aos opiáceos, indo além dos limites ao beber solvente (álcool destilado de madeira, capaz de matar com a ingestão de simples 30 mL), que atacava seu estômago de tal forma que chegou a se dopar com heroína por três dias seguidos, sem dormir, para suportar a dor. Sucediam-se crises de depressão, ideias mórbidas e de suicídio. Não faltaram tentativas para ele e Courtney Love procurarem ajuda, após saberem que seriam pais de uma criança. Em vão. As apresentações em que se acidentava (ou se automutilava?) eram aterrorizantes, mas, sem sentir dor, gritava, para o delírio da plateia ensandecida pelo espetáculo selvagem: “Eu sou um circo humano!”

Apesar das crises de depressão, excesso de drogas e um histórico familiar de problemas mentais, depressão e suicídios, Kurt Cobain tornou-se ídolo de uma juventude que desconhecia o real significado da palavra nirvana e o inferno pessoal de seu astro. Títulos das músicas, como “Aneurysm” (doença vascular cerebral), “Lithium” (remédio para depressão bipolar) e seus poemas eram odes de caráter mórbido e deprimente: “estupre-me, estupre-me, amigo, estupre-me novamente”. “Minha inspiração interna favorita / eu vou beijar suas feridas abertas / agradeço sua preocupação / você vai feder e queimar” (em “Rape me”). Do punk ao punk-rock e de lá ao grunge de Seattle, Cobain deixou uma discografia historicamente importante para o rock. Porém, como ser humano e “pensador” (sic), foi um lixo desqualificado e prestou um enorme desserviço a pelo menos duas gerações hipnotizadas.

(Errata: na coluna da semana passada, onde se lê “para Alma Mahler”, leia-se “para a filha de Alma Mahler, Manon Gropius”).