Parte I – Onde convivem liberdades individuais e religiões
de Londres
Ninguém conhece um país senão após anos de lá viver, dominar-lhe a língua, poder ler seus jornais e entender notícias da TV, e, claro, compreender lugares e coisas. Há que se conhecer um país por sua origem, seus antecedentes, suas mesclas raciais, costumes, alimentação, valores estéticos, culturais, leis, religiões, enfim, a cultura em forma mais ampla possível. A curto prazo, quem conhece bem o idioma deve passar sem guias ou grupos de turnês, por menor que seja o tempo de viagem: é preciso sentir-se um a mais na multidão das ruas e avenidas. Pegar ônibus, metrô, andar a pé – costume sadio em todas as grandes cidades do mundo -, fazer compras, conversar, criar amizades e ver ao vivo, em cores e odores, qual a fatia com que contribui para a nossa enorme sociedade ocidental.
Há aparentes contradições, na verdade grandes contrastes, particularidades dos países que visitamos. E se falamos da Inglaterra, que visitamos neste artigo, trata-se de mais de 15 séculos, sem contar todo um passado que remonta ao período paleológico superior e várias civilizações, entre elas a conquista alemã. Quando, logo ali no parágrafo anterior, referi-me à “nossa sociedade ocidental” quis dizer o “nosso mundo americano e europeu” (nas Américas, os livros das escolas se esquecem propositalmente de nossas verdadeiras e longínquas origens indígenas). Voltando às “contradições”, devem-se à visão belicista: nações em permanentes conflitos, radicalismos e fanatismos decorrentes da sede pelo poder, de fundamentalismos religiosos e disputas raciais arraigados lado a lado sob profundos vincos históricos. Em Londres a convivência é inegavelmente sociável e pode começar na sua própria vizinhança: na esquina da “townhouse” onde estou, nessa breve temporada, fica o Central Mosgue, mesquita muçulmana paquistanesa, com direito a vestes e burcas. A poucos metros, na estação de metrô Willesden Green, há uma comunidade judaica ortodoxa – homens de chapéu preto usam suas “tranças de Sansão” sobre as costeletas: querem “repovoar o mundo” aumentando-lhe a participação judaica. É comum vê-los todos enfurnados em seus livros sagrados, cristãos lado a lado com judeus e muçulmanos, a bordo, cada um, de sua Bíblia, ou Torá ou Alcorão. E essa confluência pode acontecer até mesmo em frente a uma Igreja Anglicana do porte da linda Westminster Abbey, construção cristã de 1245, às ordens do rei Henry III. É uma cidade de imigrantes, acrescida de um contingente enorme de negros e todos os que contribuem para seu progresso – às avessas do maior mal dos povos radicais e fanáticos, apegados à ira, à inveja, à cobiça e ao orgulho, ditos pecados capitais. A xenofobia (do grego “Ksénos”, estranho, e “fóbos”, medo) é a amante manteúda dos radicalismos, supostamente em nome da segurança de nações a povoados que precisam manter seus dogmas de superioridade. É o medo de perder espaço, ver ameaçada a supremacia de suas propriedades pessoais, seu pequeno poder, resquícios de eras pré-históricas.
Para um brasileiro, pode parecer estranho um estado livre declaradamente religioso, que adota por lei a fé da Igreja Anglicana. Pela constituição do Império, a rainha é chefe de Estado e de sua Igreja, uma ordem social em que as duas coisas se confundem e quase nunca são questionadas (como veremos em um próximo artigo). Enquanto isso, ainda se discute se o Brasil é país constitucionalmente laico (aquele “ésob a proteção de Deus” do preâmbulo, introdução (a lei começa no Título I), fala em Deus, mas não de religião). Curioso: mesmo laico, o Brasil, cada vez mais, é vaca de muitas tetas para grandes conchavos políticos de bastidores e dos mais pérfidos acordos com “igrejas’ (em sua maior parte, seitas) com fictícios ideais de fé e fortemente seduzidas por chicanas partidárias, enriquecimento ilícito e corrupção. Afinal, no Brasil de hoje quando se conquista o poder é preciso mantê-lo mesmo que loteado no Executivo e Legislativo, descomprometido com quaisquer fundamentos de ordem ideológica ou fé religiosa com que, iludindo fieis, ajudam-lhe a carrear votos. (Nicolò Machiavelli explicou com sua máxima sabedoria sobre a necessidade de manutenção do poder pelo Príncipe sobre um povo sobre o qual impôs seu domínio).
A Inglaterra é equivocadamente tida como um país extremamente conservador, pecha que vamos refutando por aqui aos poucos. Ela é uma monarquia democrática e permissiva a um limite do sociável, por outro lado com limites permeáveis da liberdade individual em vida comunitária (falarei sobre mais esse “contraste” político em um próximo artigo). Em Londres, como em qualquer cidade turística por excelência, pessoas sentam-se nas mesas de pequenos bares nas calçadas tomando cerveja no centro, bairros ou nos aprazíveis entornos do rio Tâmisa. (Nos EUA, um dos países com maior contingente de alcoólatras nas ruas, tomar chope na rua é ilegal, há que ser sempre às escondidas, prova de que não adianta nada). No coração do centro londrino, jovens de todas as gerações e origens sentam-se ao redor do lindo Piccadilly Circus, ouvindo músicos de rua sem sequer se distraírem com casais de diversas opções pessoais que passeiam de mãos dadas. Um país religioso é extremamente conservador e reacionário por causa de uma fé “oficial”? A Inglaterra de Londres prova que absolutamente não. (O assunto Inglaterra segue no artigo do próximo número).