Yulia: a voz rouca que chega com os ventos do leste





Yulia Tymoshenko, uma cinquentona de rosto ainda pleno de beleza, embora marcado pela luta por sua Ucrânia livre, sai da prisão, após mais de 30 meses, para a simbólica Praça de Independência, palco de resistência que deixou até cem mortos, nos últimos dias. Com seu tradicional penteado – tranças ao redor da cabeça -, Yulia se dirigiu ao povo com a voz do sofrimento, como uma cantora de blues: rouca, lamentosa, mas viva e enérgica. Falava sentada em uma cadeira de rodas, resultado de uma hérnia de disco agravada no cárcere. Se a aparência era frágil, o discurso foi ácido, pedindo que o julgamento do ditador deposto, Yanukovich, fosse ali mesmo, naquela praça. Em 2004, Yulia liderou um movimento para denunciar fraude nas eleições a que concorrera contra Yanukovich. Lançou-se novamente à presidência, mas perdeu, sempre por margem apertada de votos e sob denúncias de fraude. No fim de semana passado, o ministro do interior demitiu-se, pois não queria suas mãos “em um grande banho de sangue”. O Parlamento derrubou Yanukovich, que está foragido, restaurou a Constituição de 2004 e convocou novas eleições presidenciais para maio. Dias depois, policiais da tropa de choque se ajoelharam e pediram perdão por seus atos.

A Ucrânia faz fronteira com a Bielo-Rússia, ao Norte, e Polônia, Romênia e Moldávia, a Oeste e ao Sul. O país é dividido culturalmente, e o lado oriental fala o idioma russo, alinhando-se politicamente com Vladimir Putin. Do outro lado, a maior parte fala outros idiomas, mercê de longa história e de outras fronteiras. O corte entre esses dois lados do país fica nítido quando se vê que, no mapa eleitoral, Yulia dominou toda a área fora da influência de Putin, enquanto Yanukovich arrastou votos de toda a área de idioma russo – na verdade, dois povos coexistem em um único país.

A história da Ucrânia vem de milênios. Na Idade Média, o país foi o centro da cultura eslava oriental e durante os séculos 17 e 18 surgiu a República Cossaca, com a Ucrânia dividida, até que, no século 20, caiu sob o jugo da União Soviética. Tornou-se independente apenas em 1991, após o fim do bloco comunista. A proximidade do lado oriental com a Rússia, que lhe faz fronteira, é também ameaça de perigo. A Rússia é, hoje, um dos países mais reacionários da Europa: entre outras, leis homofóbicas seriam facilmente extensíveis aos negros, se lá os houvesse em número perceptível. Grassa o preconceito.

Na verdade, a brava resistência aos desmandos de Yanukovich custou vidas de uma gente aguerrida, disposta a arriscar-se pelo bem comum. E não foi à toa que, na manifestação do sábado (22/02), Yulia não se cansou de bradar: “heróis, vocês são heróis”, ao que a multidão devolvia, com carinho: “Yulia, Yulia”. Resta agora saber se a soberba e a ganância de Vladimir Putin arrefecerão, diante do perigo de um avanço armado russo contra a Ucrânia.

O que tiramos disso tudo? Havia um pensamento comum, a aproximação com a União Europeia, autora da articulação do acordo no parlamento ucraniano, aproximação com a UE que tem a antipatia de Putin, à frente da Rússia. Havia a vontade popular de depor uma ditadura, e aconteceu. E retorna a bandeira principal, Yulia, mulher de semblante campesino e belo como a maioria das mulheres do Leste. Houve vontade, resistência, e é ela quem personifica hoje os ideais da luta. Diversos policiais abandonaram seus postos para juntar-se aos manifestantes, lembrando a Revolução dos Cravos (Portugal, 1974), quando  soldados marcharam portando em suas baionetas botões de cravos brancos, simbolizando a paz.

Se a voz rouca que vem com o vento do Leste chegou à Venezuela, não se sabe. Lá, a classe média se desespera com a falta de tudo, as gôndolas dos supermercados estão vazias, a economia está em colapso e um cidadão ilude metade do povo ao vender-se como porta-voz messiânico de seu mentor, Chávez, e vê seu guia genial dos povos na penumbra de uma escavação e com ele conversa na forma de um passarinho. E essa é a diferença entre o povo amigo venezuelano e o brasileiro, que dificilmente cairia em tamanha galhofada. Contudo, há muitos mortos, um opositor (Capriles) da elite e um outro, preso, que praticamente se entregou aos grilhões: Leopoldo López.

Por fim, no Brasil, as manifestações populares estão perdendo a força. Falta apoio, controle, falta liderança para os protestos (em princípio, justos), falta direção de pensamento, objetivos. Contra a Copa, que seja, mas é uma coisa mais midiática, porque a Copa está aí, e é inamovível tal como o Pão de Açúcar do Rio de janeiro, quer queiram ou não. (A discussão sobre gastos, superfaturamento, subutilização dos estádios após os jogos, claro que tudo é discussão válida). Ora foram os “vintinho”, ora foi isso, foi aquilo, mas faltaram lideranças, apesar de certa neoesquerda ver nesse anonimato algo positivo e “novo”. Alguns se rendem mesmo aos black blocs, protofascistas sem causa. Pelo visto, nenhum vento soprado do Leste aqui chegará, nem uma intenção sólida de luta, restando, de “moto próprio”, os que depredam e destroem por ódio ou prazer. E ninguém quer um golpe de estado.

Por fim, defender regimes despóticos apenas porque foram eleitos pelo voto é absurdo. Na Roma antiga reis foram eleitos, e nem por isso houve democracia. A eleição é apenas a porta de entrada para o exercício da democracia plena, a do dia a dia, da liberdade, e não existe “de per si”. E qualquer falsa imparcialidade é apenas mero exercício oportunista.