Walter Smetak, suí­ço baiano





O bruxo musical que sacudiu o Brasil

Nascido em 1913, em Zurich, Suíça, filho de pais imigrantes da Checoslováquia, teve formação no afamado Mozarteum de Salzburg, com ênfase especial no violoncelo, tudo para ser um bom músico. Aos 24 anos, veio para o Brasil e tentou emprego em uma das poucas orquestras existentes, em Porto Alegre, mas o grupo encerrou suas atividades. Passou a tocar em “dancings”, casamentos, rádios e até no Cassino da Urca, no Rio. Essa experiência foi marcante em seu ecletismo musical, temperado ainda pelos sons que seu pai, músico amador, tocava no folclórico dulcimer checo. Descobriu que o universo dos sons ia muito além daquele que havia conhecido em Salzburg e Viena.

Em 1957, foi lecionar na Universidade Federal da Bahia, onde fervilhavam novas ideias. Lá, dividiu seus conhecimentos e investiu na música que gostava de fazer, mistura geral de culturas, “melting pot” que haveria de deixar profundas marcas no Brasil. Criou diversos instrumentos, entre os feitos de PVC e outros com cocos e cabaças (grandes frutos que, secos, ficam rijos como madeira) que serviam de caixa de ressonância, tocados à maneira do Ravanastron indiano, com o arco empunhado por trás. Envolveu-se com o universo dos microtons, intervalos menores do que meios-tons (as 12 teclas brancas e pretas da escala do piano), coisa comum entre povos asiáticos. Já o movimento microtonal acadêmico do mexicano Julián Carrillo chegou a influenciar Bloch e Ives.

Em Boston, eu tive a oportunidade de ter aulas com Joe Maneri, que havia sido aluno de Alban Berg, expoente da segunda escola de Viena de Schönberg. Não apenas conheci o universo que este último desenvolvera, o dodecafonismo (construção quase matemática de séries de 12 sons e suas variações programadas), mas também o microtonalismo. Nada a ver com o indiano ou as inflexões naturais do blues: era um sistema rígido para se lidar com partículas menores do que meios tons, ou seja, um quarto, um oitavo, um 12 avos (ou ainda menos) de tom. Nesses experimentos, para se trabalhar uma curta obra era necessário o tempo de uma aula inteira, utilizando como guia um monocórdio, artefato empregado por Pitágoras (c. 570-495 a.C.) em seus estudos acústicos. Como o nome diz, o monocórdio tinha apenas uma corda, e em seu corpo era colada uma espécie de fita métrica com as distâncias exatas onde deveria se colocar um anteparo que tocava a corda e produzia diferentes microtons.

Smetak não empregava essas partículas sonoras como os teóricos, ele as usava livremente, à maneira asiática. Criou um time de fiéis seguidores, como Tuzé de Abreu, Tom Zé e Marco Antonio Guimarães, responsável pela criação do grupo mineiro Uakti (1978), e influenciou Gil e Caetano. Este último assumiu de vez o experimentalismo no LP “Araçá Azul” (Polygram, 1973), incursão que veio não para fazer sucesso, claro, era biscoito fino, mas foi marco do limite a que havia chegado aquilo que Augusto de Campos, em seu livro “Balanço da Bossa” (SP: Ed. Perspectiva, 1968), chamou “linha evolutiva da MPB”. No Rio, seduziu e foi seduzido pela bela cantora Diana Strella, filha de um dos integrantes do Bando da Lua de Carmen Miranda nos EUA, que despontara em um dos Festivais da Canção no Maracanãzinho.

Em 1975, no Rio, fui convidado para participar de uma série de apresentações da peça “A Caverna”, de Smetak, no MAM (Museu de Arte Moderna), local em cujo entorno acontecia de tudo nos fins de semana: Hélio Oiticica, Capinam e Naná Vasconcelos – uma feira livre de arte gratuita, onde também me apresentei com amigos. Tendo adotado o Brasil definitivamente, Smetak apaixonou-se por uma mulata baiana e rodava para lá e para cá sua velha moto Harley Davidson, que apelidara “Prostituta da Babilônia”.

Musicalmente, ele “organizava o caos” segundo sua ótica particular. Na peça, havia cinco bailarinas seminuas e cinco músicos: além de mim, lembro-me do violonista ítalo-argentino Gaetano Galifi e do percussionista Joca Moraes. O diretor Jesus Chediak, paralelamente aos ensaios musicais, fazia diariamente preleções sobre ocultismo, cabala, orixás, óvnis e tudo o mais que pudesse sincretizar em nossas cabeças – naqueles tempos já bem feitas, aliás. A direção do MAM não permitiu uma das ideias mirabolantes do Smetak, potes com maconha ardendo em cada canto do teatro, por mais que o gênio tentasse explicar com aquele seu sotaque inconfundível que “ninguém iria fumar”. Terminou aceitando incenso no lugar da erva. Depois, quis que os músicos raspassem a cabeça, mas eram tempos de longas melenas, o símbolo da força contestatória dos nossos tempos, que estavam para nossa filosofia como os cachos que davam força para Sansão. Já com a estreia próxima, acabou aceitando toucas cor da pele, como os collants com que nos vestimos.

Entre artefatos acústicos (como um kinder-ovo gigante aberto ao meio), recitativos de “O Mito da Caverna”, de Platão, relatos de óvnis e ETs na mítica São Tomé das Letras (MG), usávamos aqueles instrumentos maravilhosos que pacientemente aprendemos a tocar – e “não afinar, por favor”, tendo o misterioso órgão de Smetak ao fundo. Havia ainda um sujeito que descia a rampa da plateia em uma possante moto e fazia discursos em francês. Era um misto de liberdade cênico-musical e uma saudável transcendência sobre o real e os cânones tradicionais, aventura que ultrapassou o limiar do rompimento com o conhecimento adquirido, celebração de um rito mágico. Aos 71, em 1984, o mago nos deixou.