Vacinar ou não vacinar: eis a questão (parte II)

Apesar da obrigatoriedade da vacinação infantil, inexiste lei que estipule punição para pais que não levem os filhos para a vacina. No entanto, há mecanismos de constrangimento. Um deles é vincular o recebimento do Bolsa Família à vacinação infantil. Outro é dar liberdade ao médico para, no caso de uma criança não ser imunizada, contatar o Conselho Tutelar, que, por sua vez, pode acionar o Ministério Público para entrar com uma ação contra os pais.

O artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece a obrigatoriedade da vacinação como parte de bons tratos para com a criança. As creches da maioria dos municípios brasileiros exigem a caderneta de vacinação atualizada, como condição para matrícula.

Mas religião, também, exerce sua influência aqui no Brasil. Foi o caso da campanha de vacinação contra o HPV em meninas de 11 a 13 anos em 2014, que enfrentou resistência da comunidade evangélica. A justificativa era de que, uma vez imunizadas contra o vírus transmitido sexualmente, as jovens se sentiriam seguras para iniciar relações sexuais.

No entanto, Alessandra Michelin, da Sociedade Brasileira de Infectologia, lembra que oposições a vacinas costumam ocorrer apenas em épocas nas quais as doenças estão controladas e não fazem mais parte do imaginário da população.

“As pessoas falam esse tipo de coisa porque não viram a doença nem suas sequelas”. O HPV é triste, pode causar câncer de colo de útero e metástase em meninas de 20 anos. Basta a vacina para prevenir.

“Algumas doenças estão voltando justamente por causa dessa falta de informação”, argumenta. É o que explica o surto de sarampo que ocorreu em fevereiro de 2015 na Disney de Anaheim, da Califórnia (EUA). Após o incidente, o presidente Obama chegou a ir à televisão pedir para os pais levarem os filhos às clinicas de imunização.

Faz mal?

Vacina é um remédio. E, como qualquer outro, pode apresentar contraindicações e efeitos colaterais. Na maioria dos casos, alérgicos a um componente do medicamento ou pacientes imunossuprimidos (caso de quem enfrenta câncer ou tem Aids) não podem receber injeção. Mas e quanto a indivíduos com a saúde em dia? É grande a possibilidade de aparecer alguma consequência preocupante.

“Algumas vacinas têm efeito colateral, sim, como febre ou dores. Mas, em nível de saúde pública, não há justificativa para deixar de vacinar uma criança. Isso pode causar surtos e infecções de doenças já erradicadas e que estão presentes em outros países”, diz a presidente Luciana Rodrigues, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), na época.

Mas, se a injeção estimula a resposta do sistema imunológico ao inserir fragmentos de vírus no organismo, ela pode desenvolver a doença em questão? Esse é um dos argumentos do movimento antivacina, rechaçado, porém, por especialistas.

A explicação seria que, muitas vezes, o jovem apresenta sintomas de uma doença não identificada, que os pais associam como reação à vacina. Ou seja, fazemos relações de causa e efeito em situações que não estão, necessariamente, relacionadas.

“Há quem fale que, depois da vacina contra gripe, você pega gripe. Mas a gente sabe que isso não faz sentido, porque a vacina tem um vírus morto”, diz Alessandra. “Durante muitos anos se falava de histórias de crianças que morreram depois de tomar vacina. Mas aí, na necropsia, se via que a criança havia morrido de outra coisa, mas que o momento coincidiu de ser após a aplicação”.

Lembra-se da tese do médico britânico fraudulento de que a tríplice viral causa autismo? Bom, mesmo após ele ser desmentido, o “British Medical Journal” publicou, em 2014, um estudo que analisou 95 mil crianças com base em um banco de dados de um plano de saúde.

A conclusão foi de que a tríplice viral não está relacionada ao autismo, até mesmo em crianças com irmãos mais velhos portadores da síndrome. Note que a pesquisa compila 7,9 mil vezes mais pessoas do que a fraudulenta pesquisa de Wakefield, publicada na “The Lancet” e que contou com apenas 12 voluntários.

Bom, mas obrigar a criança a levar uma série de vacinas consecutivas não sobrecarrega o sistema imunológico? Para as autoridades, não. No livro “Recusas de Vacinas – Causas e Consequências”, o epidemiologista Guido Levi, ex-vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, escreve que bebês desenvolvem a capacidade de responder a antígenos estranhos ao organismo antes mesmo do nascimento.

“Estimando-se a quantidade de vacinas às quais uma criança seria capaz de responder em determinado momento, calcula-se, de um ponto de vista teórico, que esse número seria de aproximadamente 10 mil. Se 11 vacinas fossem aplicadas simultaneamente, somente 0,1% do sistema imune seria utilizado”, afirma. Existem várias outras vacinas, como contra as meningites A,C,W,Y e B, contra a dengue, contra o herpes Zoster, que só estão disponíveis nas clínicas particulares.

Fonte: Jornal “O Estado de S. Paulo” – ed. de 06/09/2016

* Médico especialista em pediatria pela SBP e AMB, membro da Sbim (Sociedade Brasileira de Imunizações).