Um outro Papai Noel

Henrique Autran Dourado

“Nasci no Estácio / fui educado na roda de bamba / fui diplomado na escola de samba / sou independente, conforme se vê” (“O ‘X’ do problema”). Em 1910, no Estácio de Sá, um menino nascia a fórceps, parto delicado, com uma hipoplasia para complicar. Franzino, o queixo atrofiado moldou-lhe o perfil, a marca registrada. Na pia, foi batizado Noel. Aos 21, por pressão da família, ingressou na Faculdade de Medicina da UFRJ, mas sua educação e diploma vieram mesmo das rodas da boemia e do samba. Abandonado o curso, a música foi carreira e ambiente: o Estácio foi o berço da Deixa Falar, primeira escola de samba, e Noel era apaixonado pelo ritmo.

O Rio dos anos 1920, até a morte de Noel por tuberculose, em 1937, foi o cenário em que o sambista ergueu sua vasta obra: em pouco mais de dez anos de atividade compôs perto de 300 músicas. Fugia dos parnasianismos do passado, e seu bordado de frases, palavras e rimas são de uma simplicidade que só os gênios conseguem elaborar com tanta beleza. Era amoroso por natureza, mas combativo quando queria. Parceiros e letristas, quando não ele mesmo o poeta, afinavam com suas concepções: Vadico, principalmente, e João de Barro, o Braguinha.

(Conta o folclore que Noel, já tuberculoso, estava em um bar da Lapa, após os funerais de sua mãe. Vestia uma camisa florida, até que alguém passou e o reprendeu, pois deveria estar de luto! Rapidamente o compositor, bom no taco que era, saiu-se com essa: “Luto preto é vaidade / neste turbilhão de dor / o meu luto é a saudade / e saudade não tem cor”. Noel também foi visto bebericando conhaque e tomando cerveja, e alguém o alertou que, tuberculoso, não deveria beber. Noel respondeu que seu médico realmente o havia proibido e advertiu-o de que, se não conseguisse resistir, que fosse pouco, e muito bem alimentado. “Bebo conhaque. E como dizem que cerveja alimenta…”)

O pai do novo samba fazia a crônica do Rio, como na singela “Três Apitos”, imortalizada mais tarde por Gal Costa: “Quando o apito da fábrica de tecidos / vem ferir os meus ouvidos / eu me lembro de você”. Segue-se uma pitada – para a época – de crítica social, retrato da nova revolução industrial brasileira, como fez a artista plástica Tarsila do Amaral em sua obra “Operários”: “Você que atende ao apito / de uma chaminé de barro / por que não atende ao grito tão aflito / da buzina do meu carro”.

Bom cronista, Noel retratava o cotidiano do Rio de Janeiro fosse na Vila Isabel, no Estácio ou na Lapa boêmia. Da primeira, fez o quinhão carioca na sua ótica da divisão produtiva nacional em “Feitiço da Vila”: “… São Paulo dá café / Minas dá leite / e a Vila Isabel dá samba”. Descrevia o cotidiano com perfeição, a exemplo de “Conversa de Botequim”, parceria com Vadico: “Seu garçom, faça o favor / de me trazer depressa / uma boa média / que não seja requentada / um pão bem quente / com manteiga à beça / um guardanapo / e um copo d’água bem gelado”.

As harmonias de Noel eram simples, sem encadeamentos complexos ou dissonâncias, e ele as trabalhava com invulgar preciosismo. Bom exemplo é a alternância de tonalidades maiores e menores, contrastes entre sentimentos alegres ou tristes, como em “Último Desejo”, em tom menor: “Nosso amor, que eu não esqueço / e que teve seu começo numa festa de São João / morre hoje sem foguete / sem retrato, sem bilhete / sem luar, sem violão”. Já em tom maior, a falsa alegria que logo cede à tristeza, à realidade que tentou fantasiar: “Se alguma pessoa amiga / pedir que você lhe diga / se você me quer ou não” – mas a melancolia foi mais forte, e se impôs em tonalidade menor: “Diga que você me adora / que você lamenta e chora / a nossa separação”. (Link no final)

Compositor genial, ninguém pode negar, talvez nosso sambista maior. Queixo quase ausente, chapéu, cigarro no canto da boca mesmo quando cantava. Suas gravações originais, dada a precariedade dos equipamentos da época e provavelmente a anomalia maxilar, registraram aquela voz pouco suave. Todo artista brasileiro que se preza gravou Noel, de Jobim a Eduardo Dusek, de Nélson Gonçalves a Luís Melodia, de Aracy de Almeida a Gal Costa. Mas era João Nogueira quem cantava Noel com maior admiração, de quem dizia ser o maior sambista de todos os tempos.

Pelo intimismo e a influência que exerceu por décadas, mesmo após falecido, Noel poderia ser visto como pai da bossa nova. À frente algumas décadas, faltavam apenas a influência do jazz e do impressionismo francês, como Jobim, e a batida do João Gilberto. Deu régua e compasso a Chico Buarque, especialmente nas canções do início, e até surge, lembrança importante, em “Rita”: “… levou seu retrato, seu trapo, seu prato / que papel! / Uma imagem de São Francisco / e um bom disco de Noel”.

César Ladeira, radialista famoso que recebeu o epíteto “a voz da revolução constitucionalista”, autor de cognomes como “A Pequena Notável” e “O Rei da Voz”, para Carmen Miranda e Francisco Alves, deu a Noel Rosa o título de “Filósofo do Samba”. Noel sabia ser bom de disputa, mas sem perder a sutileza e a sabedoria de um “filósofo”. Exemplo foi a riquíssima contenda musical com Wilson Baptista, quando lhe deu essa de troco: “Quem é você que não sabe o que diz / meu Deus do céu, que palpite infeliz / (…) pra que ligar a quem não sabe / aonde põe o seu nariz / quem é você, que não sabe o que diz”.

Pai da MPB, filósofo do samba, esteio e arrimo da bossa nova, salve Papai Noel Rosa!