Trapalhadas políticasna música brasileira – III

Organizados ao extremo, mesmo em atividades que, como a música levam frequentemente a certas situações exóticas, no século 17 os alemães resolveram classificar seus cantores em categorias. O aluno entrava para a academia como “Schüler”, passava a “Schülfreund”depois de aprender as regras do “Tablatur”.Depois, o posto de “Sönger”, chegando a “Dichter”e, finalmente, “Meister”. A Associação de Nuremberg tinha o “Singermeister”,depois “Singermeistermeister” e, finalmente, último posto da carreira, “Singermeistermeistermeister”. Parece muito, mas ainda perde para algumas palavras mais compridas:“Donaudampschiffartselektrizitaetenauptbetriebs-werkbauunterbeamtengesellschaft”– Clube dos Oficiais Eletricistas de Vapor do Danúbio.

Em política, fala-se em canto da sereia, que tal campanha está sendo orquestrada por fulano, que o Congresso, em coro, aprovou as medidas, que o minis­tério está desafinado, que a oposição fica repetindo o bordão, que os sindi­catos vão botar a boca no trombone, que o Supremo está em compasso de espera, que o político passa a vida na flauta, que a Câmara está cheia de pianistas, que o governo fica batendo na mesma tecla e até que o adversário enfiou a viola no saco! E que dizer da banda de música da UDN, capitaneada pelo incansável Carlos Lacerda, do pé-de-valsa Juscelino e do seres­teiro João Goulart? A política interfere na música se quer valsa, polca ou funk.

Se governantes e políticos, pessoalmente, certas vezes se revelam amantes da música – Bill Clinton se arrisca no sax alto e Fernando Henrique Cardoso declarou que sua frustração era não ter seguido a carreira de músi­co, o mesmo, infelizmente, não se pode dizer da maioria dos assessores e comandados. Em um passado recente, sem esquecer precursores como Dom Pedro, Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen sempre foram mais do que meros aprecia­dores: ambos cantores bissextos e o segundo arti­culista com incursões na crítica de ópera (terá esse gênero musical conexões ocultas com as teorias econômicas mais conservadoras?).

Algumas décadas atrás, Paulo Maluf promoveu bem ao seu estilo de marketing, uma apresentação com mais cinco pianistas de primeira grandeza (e ele, claro), à frente da Orquestra do Teatro Municipal de São Paulo. Luiza Erundina regeu corais no Nordeste e o Itamaraty nos deu o genial poeta e com­positor popular temporão Vinícius de Moraes. Pelo desconhecimento da matéria, entretanto, a maior parte dos governantes, políticos, assessores e pareceristas costumam prestar-se a severas confusões.

Durante a polêmica gestão da filósofa e professora Marilena Chaui na Secretaria Municipal de Cultura do governo Luiza Erundina, foi inaugurado em 1992 um novo prédio da Escola Municipal de Música, trans­ferida de uma antiga casa de cômodos que eu chamava “pombal”, na avenida Lins de Vasconcelos, para um vistoso casarão na rua Vergueiro, em frente ao Centro Cultural. Solicitação pessoal minha, fiz questão, como diretor, de uma placa com os dizeres “Escola Municipal de Música”. Passados alguns entraves buro­cráticos, houve a promessa de que a placa seria afixa­da no dia da inauguração. Na véspera, fomos avisados de que não haveria placa, mas uma faixa provisória.

Pouco antes da inauguração, chegam alguns funcionários – que começaram a desenrolar, à minha frente e de Marilena, o esperado banner: “Escola Municipal… (e, para surpresa de todos) de Cultura”. A faixa foi joga­da fora, a escola inaugurada sem placa, e a Secretária de Cultura ficou por alguns minutos sem fala. Quando foi embora, a filósofa olhou para a faixa, que ficara esten­dida sobre a mesa, balançou a cabeça e olhou fixa­mente para mim (fazendo mentalmente, era provável, alguma digressão sobre a filosofia do pessimismo). Foi quando me veio à cabeça um lema da adolescência, que deixei escapar na despedida: “O escoteiro sorri e assobia nas dificuldades”, mandamento do escotismo.

Ainda com Marilena secretária, foi programado um evento no Centro Cultural São Paulo (aquele elefante branco que acusticamente mais se prestaria a um labo­ratório da música de Charles Ives), assentado sobre um terreno que pertencera à família do compositor Alexandre Levy (1864-1892), junto à avenida 23 de Maio. Ali iria se apresentar o acordeonista Osvaldinho, um show chamado “Painel Musical do Brasil”. Como o músico, para tal, deveria assinar um con­trato de prestação de serviços com a Prefeitura, docu­mentação competente foi encaminhada à apreciação das assessorias.

Nada mais natural, tratava-se de um caso de notória especialização de natureza artística. A lei dispensa artistas de licitações,artistas de complicados processos e é muito clara (alguém já pensou fazer uma concorrência paraver quem é o melhor Milton Nascimento?). Aquela contratação, entretanto, acabou obtendo parecer contrário do assessor jurídico de plantão, que julgou que confecção de painéis (o show era chamado “Painel Musical do Brasil!”) era trabalho de carpintaria. Especialidade que, “data vênia”, deveria sim ser objeto de licitação.

O próprio Centro Cultural é, em si, uma piada musical. Construção enorme, constitui verdadeiro desafio à concepção arquitetônica funcional, à lógica e ao mínimo bom-senso: seus três teatros poderiam ser apenas um já que, não tendo cobertura interna e conjugando com os mesmos corredores, é impossível que neles se realizem eventos simultaneamente.Mais de um evento simultâneo não vira música aleatória, mas uma Babel sonora. (Cont.)