Superstições, crendices e ditos populares III

No primeiro artigo desta série, falamos sobre passar sob uma escada, do gato preto, do porco e da porca, do melhor amigo do homem e várias outras superstições, crendices e ditos, entremeadas com frases e ideias cuja origem por vezes mal se sabe. No segundo texto, predominaram as frases, a exemplo de “o que é do homem o bicho não come”, “procurar chifre em cabeça de cavalo”, ditos já incorporados à nossa língua de forma tão natural que se ensina e se aprende escutando e passando adiante “de ouvido” (vale um trocadilho: por transmissão “aural”). E há coisas que por vezes nasceram das Sagradas Escrituras, mas isso quem sabe?

Neste terceiro artigo, comecemos com o “bode expiatório”, que é quem “paga o pato”. Mas de onde veio isso? “Levíticos, 16”. Encurtando, dois bodes foram levados ao templo, em Jerusalém. Um deles foi sacrificado e o outro deixado vivo, a fim de expiar os pecados do povo judeu. E quanto a “dar um bode”? Ah, é problema feio. Jards Macalé, ícone da contracultura dos anos 70: “se amarrar algum bode eu mato / se amarrar algum bode eu morro / mas eu volto pra curtir”. “Amarrar o bode” é ficar bravo, enfezado, porque se alguém amarra o bicho na cerca ou em um tronco ele se torna insuportável, pois berra, geme, grita, vira o diabo, é melhor soltá-lo ou ir para bem longe.

O bode na antiguidade era um animal sagrado. Também se faz presente na maçonaria, o que induz alguns leigos às vezes a associarem erroneamente os ritos maçons com coisas do diabo. Mas falar do bicho pode ser apenas uma forma de um “irmão” revelar-se maçom para outro “irmão”. Nada com o baixo-além, mesmo porque bode não fala, não conta nada, preceito fundamental para manutenção das confidências das sociedades maçons, onde segredo é regra de ouro.

A cabra, por sua vez – mulher do bode, diz-se – é vista como coisa ruim, com uma tinta de machismo: a saliva do bicho seria venenosa, de “secar pimenteira”, o bafo de dar enjoo, e, como seu marido, Sr. Bode, também teria coisa com o Demo, pois dificultaria os partos, entre outras maldades. Mas a necessidade é vil, leite de cabra é forte que só ele, e por mais que digam que a cabra é do capeta, é boa “doadora” do melhor leite.

Certa vez, perguntei ao célebre maestro cearense Eleazar de Carvalho onde ele conseguia tanta disposição para fazer um ensaio pela manhã em Porto Alegre, um concerto de Natal conosco à tarde em SP (Osesp) e um outro à noite, com a Sinfônica da Paraíba. “É que eu fui criado com leite de cabra”, bradou, como bom “Severino”. E queijo de cabra nem se fala, é bom “pra mais de metro”, muito apreciado na Europa, a exemplo dos tipos finos, como camembert, bûche ou feta. “Cabra da peste” ou “da moléstia” é o sujeito corajoso, viril, que luta como um animal e suporta as agruras do sertão nordestino. “Fulano é cabra macho”!

“Não desanimeis, animais”, brincava meu pai. Veja o boi, calmo e gentil. Cuidado: na Índia, a vaca é um animal sagrado. Por aqui, não dá bom churrasco, daí que “boi na terra dos outros vira vaca”, animal que não tem qualidade para corte e é mais utilizada para ordenha e procriação, sua carne não é tão saborosa e macia quanto a do boi. Em nossa cultura, o universo do boi veio dos árabes com os lusitanos, depois de mais de 700 anos de ocupação da Península, enriquecer nossas danças e folguedos, como o bumba-meu-boi maranhense, o boi-barroso dos Pampas, o boi-bumbá da região Norte, o boi-calemba recifense e o boi de jacá paulista, eventos cheios de danças, lendas e  fantasias.

O boi também está em uma lenda quase mítica da história do Brasil dos tempos do príncipe Maurício de Nassau (séc. 17), na época das Invasões Holandesas. Nassau queria fazer uma ponte sobre o rio Capibaribe, no Recife, mas a Holanda disse que a verba, “só no dia que boi voar”. Ironizando a “matriz”, Nassau pagou a madeira e a obra do seu bolso, e no dia da inauguração fez um boi empalhado atravessar o rio pendurado em uma roldana sobre uma corda, fazendo de bondinho. Foi baseado nessa quase-lenda que Chico Buarque e o cineasta Ruy Guerra, em parceria, compuseram para a peça “Calabar”: “O boi ainda dá bode / qual é a do boi que revoa / boi realmente não pode / voar à toa”.

Superstições, crendices, frases e expressões populares são parte de nossa cultura e como tal devem ser preservadas. Não se deve tomá-las como lei, tampouco desdenhá-las. Não são interpretações malucas de coisas reais, algumas que retroagem na história, contra a ciência, contra tudo e contra todos. Parece que nos tempos de retrocesso global de hoje abriu-se espaço para o obscurantismo de séculos atrás: crer que a Terra é plana, que é o centro do Universo ou do sistema solar e outras coisas há muito tempo enterradas.

Meu pai dizia para nós, crianças: “Meia-noite / o sol nascia / um homem nu com a mão no bolso / sentado num banco de pedra feito de pau / calado dizia: / O mundo é uma bola quadrada / que gira parada / antes morrer do que perder a vida”, motivo para risadas e pedidos para que ele repetisse, e o fazia com muito humor. É surrealista mas tão atual, essa “bola quadrada que gira parada”… Autran Dourado teria completados 93 anos no dia 18 de janeiro e carregava tudo aquilo, do seu interior mineiro, bom capiau que era, sem que fantasias se imiscuíssem na sua percepção da realidade e dos fatos. Conceitos há muito abandonados andam virando modismos, há quem os creia verdadeiros. Recorro a Einstein: a ciência, sem religião, é manca. E a religião, sem ciência, é cega. (Fim).