Suave é a brisa-mãe da véspera ou do amanhã de manhã





… e bendito é o fruto do vosso ventre

Suave é a brisa-mãe, brisa da véspera ou do amanhã de manhã, que carrega com seu sopro silencioso a pétala que antes abraçava o botão de rosa, brisa que acaricia o cabelo ralo do bebê, é o sonho gostoso de uma noite de verão, é o olhar delicado da balconista a dizer, sorrindo, “pois não?”, é a paisagem campestre e o oceano que se perde ao infinito, sinuosa planície de ondas que descem e sobem, sobem e descem, redondas e perfeitas na cadência irregular da natureza, é o sorriso feminino, sinuoso e insinuante, forma que carrega a um só tempo a pureza, o convite à dança e o desejo, lábios que sussurram e assopram a esperança e a fé, é a nuvem passageira que emoldura o horizonte, a toada sedutora e envolvente da Iara-sereia sobre a pedra do rio, é canto do “Cisne” de Saint-Saëns de um violoncelo distante, é a água que desce o ribeirinho lavando e arredondando as pedras, é a música que o riacho canta em sua perpétua passagem, como cantigas de ninar, é o olhar de Pietá de todas as Madonas do mundo, é a sombra de uma palmeira que já não há e onde sabiá já não canta, a água de coco gelada na sombra, tirada do pé, é largar-se na rede sem conseguir sair, que a preguiça amarra o corpo como uma pedra no fundo do lago.

Quando a noite vem, traz com ela a bruma, aquela que, como disse Dante, “o ar cinzento que cobre o sono dos animais na terra”, e refresca a noite dos homens, envoltos no afagar do silêncio que vem chegando para embalar o sono. E o silêncio vem, misterioso, sedutor, como um grito ao reverso, é pausa vinda do nada que faz ecoar nossos sons imaginários e nosso coração diminuir seu compasso, para que essa música acompanhe as horas da noite em que nos dedicamos à leveza, à contemplação, e às orações, cada um do jeito de cada um. Algum ruído de um carro passando, bem distante, distrai a atenção mas não nos perturba: a distância faz o som suave, quem sabe ele queira compor junto essa sonata plena de grandes pausas, os sons livres sem direção nem duração precisa.

Amanhã de manhã pode ser que chegue, pode ser que não. Mas pode ser também à noite, que é o vestibular do amanhã, noite que nada mais é que a véspera, quando é entoada a liturgia das horas, ao sinal do entardecer. E que seja uma linda Véspera de Mozart, que encheria os céus e a terra de alegria – mas se for amanhã, que seja, será esta a hora da chegada, do rebento que se apresenta ao mundo, esperado, iluminado, pleno de inspiração para a vida. Pode ser que nasça chorando, pois que é da natureza dos nascituros, ao ser-lhe apresentado o mundo, ou quem sabe sorrindo, se nos intervalos dos primeiros ares respirados ele for feliz em concatenar os momentos de inspirar com os de alegria, exercício que ele deverá manter durante toda a vida.

E que ele seja suave, mesmo com as mãos cerradas qual o botão de flor que ainda vai se abrir, e quando as abre vai soltando segredos, borboletas e arco-íris gravados em sua imaginação (coisas  que não sabemos, e mesmo que soubéssemos não compreenderíamos). Suaves serão os primeiros passos, a alegria da conquista – é isso, o primeiro passo do conquistador de um mundo melhor, para ele e os que vierem depois dele para assumir seu lugar ao mundo, seja na calmaria ou na brisa suave, que seja até na tempestade (porque esta é apenas um pequeno espirro da natureza: os grandes acidentes não são mais do que diminutos acontecimentos diante da imorredoura enormidade da vida).

E logo, logo se abre a janela pela primeira vez, como quem sai do mistério e quer desvendar o redor, e aquela luz de brilho real vinda do sol confunde os olhos, até há pouco cobertos pela penumbra da barriga-mãe, e aos poucos eles se acostumam com o mundo, suas cores, seus movimentos das ramas e copas das árvores que o vento balança, ou as nuvens que o vento leva, errantes, pra o desconhecido. Ao despertar para o mundo ele verá as pessoas com seus rostos engraçados, enormes e distorcidos, fazendo bocas, bicos e caretas: uns bonitos, outros feios, mas todos engraçados. Como é estranha essa gente-gente! Há que suportar com meu amor tantos carinhos, aquele pega-pega e carrega e beija, aperta e espreme, coisa que eu tenho que aceitar para agradar a todos – afinal no fundo, no fundo, sou bem-vindo, e todos me querem bem.

Lança, balança, embala o sono, balança mais, ele dorme, a mãe guarda a lambança – brincar é uma festa e única ocupação – resta à mami pouco tempo pra curtir e cantar boi valentão, “summertime and your livin’s easy”, que a cuca vem pegar, a Lullaby de Brahms ou aquelas canções que as mamães improvisam, em “boca chiusa”, com os lábios cerrados, qual fosse a soprano da Bachiana 5 de Villa-Lobos. E pode arriscar cantar o tuiú do trenzinho que passa – o do Villa é do caipira, o trem do Drummond é poesia das Minas Gerais, que “bufando na ponte preta, é um bicho comendo as casas velhas” (saudação do poeta à Vila Nova e Sorridente de Nossa Senhora do Ó de Sabará-Buçú, ou simplesmente Sabará). E se o sono do pequenino não pega, ah, não precisa amansar a toada, é para apressar mesmo, eu gosto de ser chacoalhado, voar, acostumei-me com o embalo de quando eu era levado a caminhar, carregado no ventre, sem saber que andava e nem pra onde, pois submerso dentro daquele meu mundo pequeno, não via, não ouvia, não chorava nem sorria, somente chacoalhava e eu me divertia, quando ensaiava meus passos de futebol.

E quem falou que eu gosto daquele silêncio de hospital? Eu gosto é de bagunça, de gente, de música, gosto de vir ao mundo após esse mundaréu de tempo que foram meses em que esperei nadando no escuro, sozinho ouvindo os batimentos de coração de quem me carregava (a quem eu nem ao menos conhecia!), o som grave do fluir do sangue de um corpo maior do que o meu, como fosse riacho grande, e o ruído muito fino, agudo, do sistema nervoso, tudo que preparava meus ouvidos para o que iria apreciar na música da natureza, sob a regência perfeita da vida.

Cresce, vira gente, ou quase, atazana com estripulias a vida alheia, cuidado com a queda, menino, não caia! Não caia da bicicleta, não pule do muro, não salte do galho da jabuticabeira, um tombo besta pode lhe quebrar o braço! Mas tudo é um ensaio de coragem, de enfrentar, de perder o medo, o medo que a todos acompanha e desafia. Mas nada lhes mete apavora, eles nascem eternos, não conhecem o tempo do relógio, pensam, nunca morrerão até descobrirem que um dia podem até morrer. São terríveis inovadores, inventam coisas e gentes imaginárias e tolices, e às vezes percebem o mundo de forma genial, sem poderem explicar.

E assim a vida segue, às vezes por linhas tortas, como o anjo “gauche” do Drummond, e ela há de se perpetuar enquanto os homens durarem sobre este planeta. Mas antes que nunca, há quem traga ao nascer o ventre que tem feito a vida se repetir, acontecer de novo, reproduzir-se em novas vidas, seja na brisa-mãe da véspera de hoje ou na de amanhã de manhã. Salve todas as mães do mundo, e em especial a minha, Lucia, e minha filha, Marta, que trará (ou já trouxe hoje, quem sabe?) ao mundo um londrino, Thomas, que vai ser embalado pelo som do Big-Ben, ou ainda em um carrinho nas passagens floridas do Covent Garden em tempos de alta primavera, ou mesmo assistindo à mudança da guarda da rainha, orgulho de todos os ingleses, como ele. Aprenderá a cantar o Hino, o verdadeiro “anthem” anglicano – “God Save the Queen”! Pois Deus salve todas as rainhas do mundo em seu dia e dê vida longa às rainhas de nossas vidas!