Sem-terra somam mais de 800 em Quadra





Cristiano Mota

Funcionários do Incra realizam cadastramento de pessoas acampadas em propriedade

 

Até a manhã de quarta-feira, 19, o total de sem-terra que invadiram área na região não ainda havia sido oficializado. A expectativa da FNL (Frente Nacional de Luta Campo e Cidade), no entanto, é de que esse número aumente.

“Quando se desperta o processo, eles vêm”, justificou José Rainha Júnior, líder da FNL, grupo sem-terra que montou acampamento em região histórica, distante, aproximadamente, 18 quilômetros de Tatuí.

A frente juntou mais de 800 famílias até esta semana – a maioria de Tatuí – e reivindica terras da fazenda Paiol, uma extensão da fazenda Araras, que pertenceu ao último presidente da República Velha, Júlio Prestes de Albuquerque. A propriedade é considerada estratégica porque abrange quatro municípios.

Localizada em Quadra, a fazenda está próxima de Tatuí, Itapetininga e Guareí. Ela foi ocupada depois que um grupo considerado pequeno – de aproximadamente 40 famílias – deixou a fazenda Paiol.

Em meio a processo judicial, com ordem de despejo, e um incêndio com causas a serem apuradas, os invasores montaram acampamento a 500 metros do latifúndio.

“Dá uns três quilômetros de extensão”, mensurou Luciano de Lima, um dos dirigentes da FNL, em referência ao tamanho da área ocupada por barracos.

O número pode passar de mil, conforme as estimativas do líder dos sem-terra, já que as pessoas que querem “um pedaço de chão não param de chegar”.

São tantos os “pretendentes” que o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) decidiu dar continuidade ao cadastramento dos assentados, com ação nesta segunda-feira, 24, terça, 25, e quarta, 26.

O órgão esteve no acampamento nos dias 17, 18 e 19 deste mês, com equipe formada por 13 funcionários. Na ocasião, registrou pouco mais de 500 cadastros. Trata-se de número extraoficial, repassado à reportagem de O Progresso.

Jovens e idosos formaram fila nos três primeiros dias, sendo atendidos de acordo com “setores”. Os barracos levantados pelos próprios assentados são numerados.

“São 60 (barracos) para cada líder, e o cadastro foi em bloco”, explicou a dona de casa Andréia Ferreira Lopes, que preencheu ficha na manhã de terça.

Os líderes estabelecem regras que precisam ser cumpridas pelos assentados, de modo a manter a organização. “Eu ajudo muito os vizinhos. A gente levanta às 5h, e já está lidando com alguma coisa”, contou a assentada.

Moradora de Tatuí, Andréia deixou a casa no Jardim Rosa Garcia para tentar conquistar um terreno. Em troca, ausentou-se do cotidiano dos filhos – ela tem duas filhas menores de idade que ficam com o marido – e enfrenta adversidades.

Tem de buscar a água para consumo e improvisar para dormir, cozinhar, comer e tomar banho, entre outras tarefas que podem ser consideras simples.

Também cumpre agenda extensa, que inclui assinatura de uma espécie de “livro ponto” e frequência em reuniões de grupo. Cada setor de 60 barracos discute entre si as regras e é informado das decisões da liderança. No domingo, 16, o encontro teve como ponto alto a presença de Rainha.

Ex-líder do MST (Movimento dos Sem-Terra), ele juntou-se aos acampados há poucas semanas. Rainha está presente no processo de assentamento e quer incluir a região na lista de prioridades da FNL para reforma agrária.

De acordo com ele, a área na qual estão inseridas várias fazendas – incluindo a Araras – é propícia para o movimento “em função da situação jurídica”.

A FNL defende a ocupação das propriedades com finalidade de torná-las “produtivas”, via agricultura familiar e políticas de incentivo do governo federal.

Rainha alegou que a posse da propriedade escolhida pelo movimento “não está definida judicialmente”. Conforme ele, a fazenda conta com um quilombo e teve área desmembrada (dos 10 mil alqueires, restariam somente 4.000).

Em função disso, a frente solicitou intervenção do Incra. O órgão deve chegar a uma conclusão (quem são os proprietários de “fato e de direito”) por meio da chamada cadeia dominial. Trata-se de um histórico do imóvel que retrata, oficialmente, todo processo jurídico, do registro à posse da área.

“Quando fizer, com certeza, vai aparecer que a área é de grilo”, afirmou Rainha. A “grilagem” é um termo utilizado para a legalização de terras devolutas (públicas) ou de terceiros (particulares), por meio de produção de documentos.

Outra “situação” que fez a FNL vir para a região de Tatuí seria a “ociosidade” da área pleiteada para reforma agrária. Rainha afirmou que as terras estão improdutivas e que as que estão sendo utilizadas só produzem cana-de-açúcar.

Para ele, há dois caminhos a serem seguidos: a desapropriação (no caso das terras improdutivas) ou a compra (para as propriedades produtivas, mas que estão com posse discutida na Justiça). A frente estuda a possibilidade de utilizar esses “dois recursos” para pleitear, além da Araras, terras de outras fazendas.

“Tem outras áreas que o Incra pode desapropriar, outros latifúndios, não só em Quadra, mas na região de Sorocaba. É bom ficar com a orelha em pé”, declarou Rainha.

Caso as terras venham a ser adquiridas pelo Incra, as negociações devem levar em conta o preço de mercado e serem realizadas diretamente com os proprietários.

A FNL não terá participação nessa etapa. O processo, no entanto, só acontecerá após conclusão de estudos e do cadastramento iniciado no dia 17.

De acordo com dados do instituto, as informações fornecidas pelos assentados serão integradas a um banco de dados. Depois, serão cruzadas com bases de bancos, instituições financeiras e do governo – por meio da documentação – para verificação da situação econômica das famílias.

Rainha defendeu que a “luta” das pessoas que estão na propriedade é legítima, uma vez que o Incra começou os estudos para o processo da reforma agrária. Alegou que a vinda da equipe é prova da existência de um “latifúndio improdutivo” e que o cadastro vai mensurar o número de assentados.

“A frente não tem uma ideia. Isso, só vamos saber depois do cadastro”, citou o líder. “Tem pessoas que ainda estão chegando, mas a área vai dar para assentar todo mundo. Se não der, o Incra tem obrigação e dever de encontrar outra área para assentar essas famílias que estão aqui”, argumentou.

O desejo de ser contemplada com qualquer espaço é que faz de Maria Leonilda dos Santos uma das muitas mulheres a ocupar o assentamento. Batizado de “Cesário Silva” – nome de um aposentado que teria morrido de pneumonia no local –, o acampamento tem barracos de todos os tipos e condições de ocupação.

Natural do Estado do Paraná, a aposentada morava em Tatuí. Ela deixou a casa na qual vivia havia 21 anos, no Jardim Thomaz Guedes, assim que soube da causa.

“Encontrei um pessoal que falou que estava vindo de viagem. Eu já estava desanimada com a vida, fiquei curiosa e decidi vir para cá”, relatou.

Maria ocupa o barraco de número 181 e é sozinha. Tem de contar com a ajuda de “vizinhos” para suprir as necessidades básicas. Com as próprias mãos, construiu a moradia improvisada. “Meus dedos chegaram a ficar pretos de tanta martelada que dei para erguer meu barraco”, descreveu.

A história da aposentada é similar à de muitos assentados. A maioria teve origem no campo e afirma ter intenção de poder produzir o próprio alimento.

“Eu tinha muita vontade de participar de um acampamento. Tanto que quase fui a um que saiu, recentemente, na cidade de Capão Bonito. Meu ex-marido, na época, não permitiu. Agora, estou aqui, contente”, disse a aposentada.

A presença do assentamento é considerada pela FNL um apoio ao desenvolvimento de Quadra. Rainha alegou que o município – com 3.539 habitantes, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) – pode “crescer”, por conta de um futuro valor agregado obtido a partir da produção agrícola.

O líder do movimento também sustentou ser “inadmissível haver latifúndio improdutivo de 4.000 alqueires numa cidade com pouco mais de 3.000 habitantes”.

“Se olharmos para a habitação, tem menos pessoas que o acampamento. Então, como é que uma cidade dessas desenvolve?”, questionou.

Essa argumentação é a utilizada pela FNL para questionar a “origem do latifúndio no Brasil”. Rainha afirmou que o país tem menos de 20% da população no meio rural, que 228,5 milhões de hectares estão improdutivos (conforme levantamento divulgado pelo Incra) e atribuiu a esses dados um “fenômeno”.

Conforme ele, as pessoas que deixaram o campo para ir para as periferias das cidades – ou que nasceram no meio rural – estão voltando para as suas origens. “Grande parcela desse pessoal que está aqui tem raiz no campo”, afirmou.

O líder do movimento disse, ainda, que a agricultura familiar é a “grande fornecedora de alimentos do mercado brasileiro”. Rainha afirmou que 75% dos produtos que vão à mesa dos brasileiros são produzidos por pequenos agricultores.

Ele defendeu, também, que a distribuição de terras para assentados permitirá reduzir a “desigualdade social”. A FNL quer “democratizar a terra”. “Sem fazermos isso, é impossível falarmos em um país democrático”.

A briga em Quadra é uma das muitas deflagradas pelo movimento em todo o país. Entretanto, ela é considerada uma das mais importantes pela FNL – e tem prioridade – porque está “chamando a atenção para uma realidade quase dentro de São Paulo”.

Rainha argumentou que o acampamento é prova de que, no Estado, há terras improdutivas e que podem ser usadas para a reforma agrária. Declarou, ainda, que as áreas que podem ser cedidas aos invasores podem ser utilizadas para diversos tipos de produção, de hortifrutigranjeiros a pecuária.

A FNL deixou a definição de quais atividades são mais indicadas, no entanto, a cargo do Incra. Rainha afirmou que o órgão tem a competência para estudar quais as atividades da agricultura familiar “possíveis de acontecer”.

Alegou, também, que haverá mercado para essa produção. O argumento é a proximidade com a capital e com “cidades mais populosas”, como Tatuí e Sorocaba.