República: o que comemoramos mesmo?





Passada a data que o país consagra à Proclamação da República, dia 15 de novembro, surge a mesma questão que me incomoda em todos os inúmeros feriados. No caso, quis a sorte que neste ano o dia caísse em um domingo. Além da folga, do churrasco ou da balada, quantos se lembram do significado das datas? Todos os feriados passam a ser mera festança e preguiça, menos para os que precisam deles para trabalhar mais e levantar uns trocos, como bem cantou o Chico, em “Meu Caro Amigo”: “é pirueta pra cavar o ganha-pão / que a gente vai cavando, só de birra, só de sarro…” Sábia a declaração do papa Francisco, em jogo aberto, dia 19/11: “As festividades do Natal soam falsas em um mundo que escolheu a guerra e o ódio. Haverá luzes, festas, árvores iluminadas, presépios, (…) mas é tudo falso. O mundo continua em guerra”. Isso, no mesmo dia em que foi instalado na Praça de São Pedro um enorme pinheiro para as festividades natalinas.

Pois voltemos à República desde sua etimologia (origem das palavras). Do latim “res+publica”, o termo significa “coisa pública”. Os preceitos do que seria tal instituto remontam à Grécia e depois à Roma antigas, e se consolidam na palavra latina e seus significados. A comunidade, o consenso do direito e os interesses comuns devem nortear a república. O grego Platão (428/7 a 348/7 a.C.) tinha em seus pensamentos a “politeia”, de “polis”, de onde Petrópolis, cidade de Pedro, e Acrópole, a parte mais alta do burgo, onde ficavam os poderes. Os latinos seguem os pensamentos de Cícero (106 a 43 a.C.), que fez sua versão da Politeia, original de Platão, para “República”, mas o sentido original de comunidade harmônica permanece, com suas diferenças. A palavra veio designar, mais tarde, uma forma de governo em que prevalece a busca pela igualdade de direitos entre os homens e sua representatividade nos poderes. Surgiu em nossa língua por volta do século 15, e foi usada até pelo Império Português (D. João II) com sentido de comunidade.

Modernamente, república passa a significar, de forma simplista, o oposto de monarquia, colocando de um lado um sistema em que o poder é exercido pelo povo e para ele, e, na contramão, aquele em que o soberano o exerce de forma pessoal e absoluta. Curioso é que em monarquias como Grã-Bretanha, Dinamarca, Suécia e Espanha elementos republicanos estão mais presentes do que em boa parte das chamadas repúblicas.

Deodoro proclamou a nova forma de governo no Brasil derrubando o Império, já em frangalhos – no famoso Baile da Ilha Fiscal do Rio de Janeiro, no dia 9 de novembro de 1889, D. Pedro II caiu, ao subir as escadas. Levantou-se exclamando: “Cai o imperador, mas não cai o Império!”. Seis dias depois, o regime viria abaixo. Com o golpe, Deodoro vestiu-se de déspota, mas conseguiu ser ultrapassado por seu sucessor, Floriano Peixoto, o “marechal de ferro”, que instaurou de vez a ditadura, controlou a imprensa, manietou e ameaçou de prisão os membros da Suprema Corte. O florianismo foi inspiração para o getulismo e tantas ditaduras declaradas ou dissimuladas, até a mais longa e cruel de todas, a de 1964, que deu sinais de falência múltipla ao completar a maioridade, aos 21 anos, após a eleição de Tancredo Neves e a posse de José Sarney em 1985.

Mas voltemos a Cícero e sua república, avançando sobre o Brasil dos dias de hoje. Segundo ele, haveria três pressupostos básicos: interesses comunitários (“communio”), o povo (“multitude”) e o consenso do bom direito (“consensus juris”). Quanto ao “communio”, ele está presente, de uma forma ou de outra, mas esses interesses não ficam em primeiro plano: decidem sobre ele pessoas em sua maioria despreparadas e grande número de representantes que só defendem seus próprios bolsos, sem a menor preocupação de simular castidade ou honestidade. Há um poder executivo que trabalha por seu grupo e interesses, embriagado pela volúpia de perpetuar-se no poder. A “multitude”, ou seja, o povo, está presente apenas como massa, que querem “massa ignara” como a ela se referiu o polêmico teatrólogo Nelson Rodrigues. Já o “consensus juris”, ou consenso do direito, pouco existe, e é atropelado por toda sorte de embargos, agravos, seguranças, recursos “ad aeternum” às segundas e terceiras instâncias ou a várias delas, até os chamados “repetitivos”: cabem todas as manobras protelatórias e até mesmo os chamados embargos infringentes, que anulam todos os julgados anteriores, caso de alguns réus do mensalão. A Suprema Corte é obrigada a interferir nos desmandos do Legislativo e Executivo, embora soterrada por centenas de milhares de processos que vão desde uma condenação por porte de pequena porção de maconha – um caso recente, ao menos, criou jurisprudência -, e mesmo furtos famélicos, cometidos pelo instinto da fome ou necessidade pessoal absoluta, como uma escova de dentes.

Por onde andam a nossa “coisa pública” e os preceitos que norteiam o instituto republicano? Contraditoriamente, nas já citadas monarquias europeias eles se mostram mais presentes e dominantes do que em países como o nosso. Por tudo isso, pensando no papa, quando ele se referiu à falsidade das festividades natalinas, fica minha “pergunta sem resposta” (título de música de Charles Ives) sobre um feriado para algo que tem perdido significado, o da República. “Nostri culpa, nostri culpa, nostri maxima culpa”, já que “todo poder emana do povo, que o exerce”, como dita a Constituição da República! Ou assim deveria.