Referência e um pouco de vergonha

Com a escusa dos leitores, nesta edição, escapamos dos temas locais para externar – e lamentar – a perda prematura de um profissional de primeira grandeza e que, muito acima disto, tem sido lembrado, por colegas de trabalho e amigos, como um “cara legal”: Ricardo Boechat.

Pois é, nada legal tem sido este ano de 2019, ainda tão no início, mas já marcado por tragédias como a de Brumadinho, em Minas Gerais, a do incêndio que vitimou garotos no alojamento do Flamengo, no Rio de Janeiro, e, agora, com a morte do âncora do Jornal da Band, ao lado do piloto que o transportava, em São Paulo.

São fatos conhecidos, que ganharam repercussão nacional, daí serem aqui comentados – embora sem qualquer menosprezo a outras tantas desgraças, ocorridas diariamente no Brasil e mundo afora, que sequer ficamos sabendo.

A entrelaçá-los, contudo, há a clara evidência da falta de prevenção, seja no processo arcaico de cuidado dos resíduos em Minas, seja pelo uso inadequado de acomodações não projetadas para serem dormitórios, seja pela utilização não autorizada de um equipamento como táxi aéreo…

A improvisação – que se consolidou a partir de uma cultura de gambiarras – é algo inato à história do país e segue inabalável, sustentando calamidades periódicas, cujas consequências nem servem como aprendizado.

São vistas, isto sim, como “fenômenos”, manifestações isoladas que, por azar, ocorreram, mas que, “se Deus quiser”, nunca mais acontecerão.

Mas, infelizmente, vão continuar a se repetir, até porque parece que estamos aqui para “aprender” mesmo, e, portanto, se não aceitamos o fato, seguiremos condenados a mais e mais castigos. Para quem tem fé, é justo pensar que “Deus é bom”, mas, certamente, trouxa não O é.

Neste triste momento, contudo, sofrem mais ainda – além dos familiares de todas essas vítimas, naturalmente -, os colegas jornalistas e a população de boa-índole, que percebia claramente o bom-caratismo, as boas-intenções e a irreverência de Boechat, além da competência ímpar.

Como se fosse pouco – como se já não fossem raros os profissionais da área a ter liberdade de falar o que pensam -, o jornalista ainda se expressava com talento, conhecimento de causa, justiça e extremo bom-humor – algo também cada vez mais precioso e “necessário” na atualidade.

Por este particular, comprovou ser perfeitamente possível a harmonia e coexistência entre trabalho sério e bem feito com humor e leveza.

Era descrito como “obsessivo” quanto à qualidade dos mais variados formatos em que a notícia é levada a público – texto, imagem, locução, edição -, mas, ao mesmo tempo, como uma figura solidária, alegre e agregadora, capaz de contagiar os colegas a produzirem mais e melhor, assim arrebanhando amigos e admiradores ao longo de seus 66 anos.

Todas estas virtudes, porém, já estiveram fartamente em exposição na grande mídia ao longo da semana. O registro neste espaço, não obstante, é pertinente porque, independentemente da profissão de Boechat, a postura e exemplo dele como profissional servem a todos como referência.

Primeiro, reitera a verdade de que, para fazer algo bem feito, é preciso “gostar do riscado”. Ou seja, para ser um piloto de Fórmula 1, certamente, é necessário gostar (muito) de carros e de pilotar.

Da mesma maneira, para ser um jornalista de verdade (nem dizemos de sucesso), é fundamental gostar de notícias – de dar as notícias em “primeira mão”! -, tal como idolatrar os livros, que, de bons autores, ensinam o metiê básico desta profissão, que é saber escrever – seja para jornal, rádio, TV ou internet.

Aliás, esta dedicação e objetivo estão tão, mas tão longe do repasse de boataria pelas redes sociais que uma fatalidade desta, por um olhar até um tanto melancólico, faz pensar que Boechat foi chamado a outra dimensão justamente para não ter de testemunhar o que acontece com o jornalismo profissional, pressionado pelo fantasma da censura de um lado e, de outro, tendo seu maior “produto” confundido com algo que se cata no chão em final de feira…

Este “produto” ofertado pelo jornalismo, até o advento das “fake news”, era considerado essencial à efetiva democracia – esta, também desvalorizada, em favor dos extremismos que ganham o mundo e, não por acaso, fazem grande uso da desinformação para engrossar suas fileiras de beligerantes descerebrados.

O principal “produto” do jornalismo, por certo, é a “informação”, de credibilidade e sob a responsabilidade de quem a assina.

Também é indiscutível que, para apurá-la e transmiti-la, há todo um processo, com seus respectivos esforços e custos, inclusive – daí porque não pode ser confundida com um tomate apodrecido, no chão da feira, ou com uma mensagem anônima, coisas que se pode ter de graça, supostamente…

Por tudo isto, o grande jornalista deixa um exemplo de vida e profissional a ser, verdadeiramente, seguido como referência.

E mais: a quem, nesta profissão, busca entregar o melhor “produto” possível, busca apresentar seu trabalho da melhor forma, que tem a consciência de precisar se superar sempre, Boechat deixa até um pouquinho de vergonha, porque lega-nos a sensação de que, por mais que tenhamos nos esforçado, ainda poderíamos ter feito muito mais…