Rebeldes sem causa, sem lenço nem documento





Terça-feira passada fui surpreendido ao ler uma matéria da Internet que dava conta de piquetes nos quatro portões da USP. Fiquei mais tranquilo quando minha filha de 18 anos me avisou que conseguiu entrar pelo P3, mas demorou mais de uma hora e meia para conseguir chegar no prédio da Química. Ela, como os outros quase cem mil alunos da USP, sofrem com a insensatez de um grupo de 200 meninos de classe média alta, que não precisam estudar e, claro, menos ainda trabalhar (um deles posou para um jornal com um cartaz: “Papi me dá tudo. Por isso tenho tempo p/ ser revolucionário”). Os bloqueios das reitorias e departamentos, além das aulas, começam a criar problemas para a pesquisa, o atendimento médico e o tratamento veterinário gratuitos nas universidades públicas. Quem está sendo aviltado é o povo que sustenta a universidade e seu patrimônio; um grupelho parece querer transformá-la em uma ilha isolada, onde a ordem e a democracia serão soterradas pela cegueira política.

Quando entrei como docente na USP (1988), dei de cara com “minha primeira greve”. Docentes das três universidades públicas rumaram ao Palácio dos Bandeirantes, gritando por aumento. Porém, havia outras palavras de ordem, como “diretas urgente, reitor e presidente” (o último, direito que não existia e só voltou em 1990). A multidão foi dissolvida pelas montarias, os policiais usando aqueles longos cassetetes de madeira (nos anos 1968/71 eram o “Mec-Usaid e abuseid”, em alusão ao acordo entre o governo brasileiro, via MEC, e o Usaid – Auxílio dos EUA para o Desenvolvimento Internacional. Na verdade, apenas um meio a mais de vigiar o país em época de turbulências). Na greve de 88, escondi-me atrás de uma árvore das cercanias do Palácio, lembrando uma frase hilária do famoso colunista social Ibrahim Sued: “Cavalo não desce escada”. Pois bem, sendo assim, também não subiria em árvore, pensei rindo com meus botões.

Depois de muitos anos, a histórica FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas, a popular “Fefelêch”) se manifesta: uma carta aberta, assinada por 117 professores da famosa escola uspiana, condena a atitude de bloqueio da reitoria, escolas e institutos na maior universidade da América Latina por uma minoria que quer a todo custo impedir o acesso da imensa maioria de alunos e dos professores às suas aulas. Greve é um direito sagrado, mas o trabalho também é. Fique claro: a FFLCH não é nem foi um antro de direitistas. Muito pelo contrário, boa parte do pensamento de esquerda brasileiro saiu de lá, o fundamento ideológico das origens do PT lá finca raízes, não há como estigmatizá-la como reacionária. Gianotti, Marilena Chaui, Olgária Matos, Alfredo Bosi, Antonio Candido, Aziz Ab’Saber, Renato Janine e até Lévi-Strauss e Roger Bastide não são nomes de velhos reacionários. Pelo contrário, são o que a universidade brasileira tem ou teve de melhor. O texto conclui nos seguintes termos, literalmente: “É necessário recuperar a capacidade de mobilização por meio do diálogo e do convencimento, características que definem a própria natureza da Universidade. Ao abrirmos mão dessas qualidades, igualamo-nos a um regime qualquer, no qual as vontades se impõem pela força, esvaindo-se não muito tempo depois, sem deixar conquistas, apenas traços de intolerância e isolamento!”

Agora, a pergunta que nos fazemos: o que querem esses estudantes? Querem “apenas” a eleição direta para reitor, a proibição total do ingresso da polícia no campus  – que eu chamaria de “vaticanização” da USP, como santuário “imaculado” da baderna – e, claro, a destituição do reitor por meio de “assembleia” (provavelmente daquele tipo “levanta a mão”). Não conheço, no mundo, uma universidade que tenha seu reitor escolhido por eleição direta paritária. Seria certamente um reitor submisso aos delírios estudantis, já que seriam cem mil votos contra 6 mil dos professores. A escolha de um reitor se dá por mérito, por credenciamento técnico que confere ao candidato qualificação e competência (e nunca pela “massa ignara”, como dizia Nelson Rodrigues). O que querem um aluno que já está se despedindo agora, no último ano, e um calouro, que mal sabe ir de seu departamento ao refeitório? O que entendem eles de administração? As universidades públicas são autônomas, mas recebem somas polpudas do estado para oferecer ensino, pesquisa e extensão à comunidade como um todo. A presença da polícia, para a proteção dos próprios alunos, incomoda? Incomodaria nos meus tempos de estudante, por razões óbvias, mas nunca agora (não confundir com os excessos cometidos por alguns agentes, nas algazarras insanas das ruas). Agora, uma USP parlamentarista, em que jovens levantam a mão para “depor” a reitoria, sinto muito. Procurem alguma coisa para fazer, como estudar.

O texto da FFLCH, comentado em editorial do “Estadão” esta semana, repercutiu no país. E de carona vemos o protesto sem rosto, sem lideranças, nem ideologia – e da violência de subgrupos radicais com visual e nome (e só isso) importados, os Black Blocs, rejeitados por 95% dos paulistanos. Cazuza gritava “ideologia, quero uma pra viver”. Talvez por não ter encontrado uma, já que o mundo vive um “hiato” filosófico e não tem mais nada a oferecer, ele teve o fim que teve. Minha filha conseguiu sair da USP sem transtorno, na terça. Que a deixem circular e ter as aulas de que precisa, para enfim formar-se e lutar para construir um país melhor do que este que estamos vendo, a navegar sem rumo.