Quando apanhar não era caso de polícia

Na atualidade, precisa ser muito criança para nunca ter ouvido sobre uma tal Lei Maria da Penha, a partir da qual, basicamente, se um homem bate em uma mulher, pode acabar preso – e, em geral, acaba. Porém, nem sempre assim aconteceu.

Para determinadas gerações de mulheres – aquelas, grosso modo, com menos de 40 anos -, parece algo inimaginável que possam ser espancadas dentro de casa (ou mesmo em lugares públicos) e com o agressor nada ocorrer.

No entanto, sim, ainda há muito senhorzinho andando por aí – ainda que claudicante -, com “feição de dó” aos 60, 70, 80 anos ou mais, que, em seus áureos tempos, enchia a cara da mulher de porrada e, a despeito disso, sequer chegou a sentar-se em um banquinho diante do “delegado”.

Só para informar a estas novas gerações, o “delegado” (lembrado aqui de maneira genérica) era uma das maiores “autoridades”, notório por impor medo em tempos passados, sombrios, quando se menosprezavam os direitos humanos e, por consequência, os mais frágeis (mulheres, negros, índios, homossexuais etc., etc…).

Ah, sim: aparentemente, há muito saudosismo quanto a esses tempos – como se observa na rotina da contemporaneidade -, o que não deixa de ser um fenômeno irracional, sobretudo por ter entre si um enorme contingente feminino…

Mas, voltando ao passado, é necessário registrar a razão pela qual ninguém ia preso por bater em mulher, mesmo já existindo leis a punir a violência. Isso acontecia porque, basicamente, as leis não eram cumpridas – ou, por outro aspecto, só valiam para os mais “fortes” (também literalmente neste caso).

E essa barbárie fazia parte da rotina de Tatuí? Sim, com certeza! Não se trata de revisionismo, tampouco de denominar agressores ou autoridades coniventes, apenas de resgatar triste e dolorido fato que fez parte da história de muitas mulheres em Tatuí e, claro, país afora.

Os sentimentos de desamparo e desespero marcaram essas mulheres, que ainda devem carregar a mágoa até hoje. Certamente, ainda se lembram de, de vez ou outra, terem procurado a delegacia – ainda que com medo e insegurança – para registrar boletim de ocorrência, mas não conseguirem concretizá-lo.

Até acreditando (talvez) estar fazendo o correto, a autoridade costumava “aconselhar” a dama fustigada, levando-a a crer que mais valia a pena perdoar, que os filhos sofreriam com a continuidade da briga do casal, que “mulher solteira” (especialmente com criança) teria ainda mais dificuldades, que, afinal, era preciso “pensar na família”…

E lá ia embora a mulher, com mais rancor e desesperança que hematomas, ciente de que, além de toda a prática machista, se insistisse na denúncia, não apenas estaria sem qualquer proteção do estado quanto, na pior das hipóteses, poderia até acabar morta.

Incrível que essa sensação de impunidade de outrora, a despeito dos avanços dos direitos individuais e da própria Lei Maria da Penha, ainda cause vítimas na atualidade. A diferença é que, agora, muitos dos agressores acabam presos.

Outra mudança, por demais significativa, está justamente na sensação da mulher, que já se sente “minimamente” amparada a expor a situação de agressão junto às autoridades e, assim, à Justiça. Naturalmente, neste ponto, o advento das delegacias da mulher impôs uma revolução nas conquistas femininas, quebrando por definitivo o estigma de “sexo frágil”. Isso, sim, é “empoderamento”, grande conquista frente às desigualdades entre os sexos.

Vai daí o resultado do índice crescente dos registros de violência contra a mulher – formais, esses divulgados pelo estado. Sim, como já observado, há uma onda de saudosismo mórbido no sentido da perda de direitos e da insensibilidade como um todo – mormente a social -, mas a certeza de que a Justiça “funciona” leva mais mulheres a denunciar, elevando os números oficiais.

Para se ter ideia, no Brasil, a cada dois minutos, ocorre um caso de violência doméstica. Os dados foram divulgados no final do ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com amplo panorama sobre todo o país.

Conforme observado por Raquel Kobashi Gallinati, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, “a rotina doméstica violenta ocorre gradativamente, com gritos, xingamentos e agressão física. Quando chegam a público, muitos casos já entraram nas estatísticas de feminicídio”.

“As agressões se arrastam durante anos, motivadas por ciúme, sentimento de posse e violência, muitas vezes ampliadas por fatores como abuso de álcool e drogas ilícitas. Quando a mulher decide romper com esse ciclo e denuncia o agressor ou põe um fim ao relacionamento, o caso chega ao conhecimento da polícia”, argumenta a delegada.

Ela sustenta que, “quando a violência é conhecida, as autoridades agem rápido, com prisão dos acusados e medidas protetivas de urgência para as vítimas”. Não obstante, ela acrescenta que “nada disso é suficiente para garantir a segurança das mulheres”.

Isso porque, explica, “são muitos os casos de feminicídio em que o companheiro comete o assassinato após ter a fiança da prisão paga e desrespeitando ordens judiciais, como, por exemplo, não ter contato e não frequentar os mesmos locais que a vítima”.

No Dia Internacional da Mulher, a delegada defende ser preciso reforçar o debate sobre como agir para evitar a violência doméstica, especialmente se o crime ocorre dentro de casa. A solução, segundo ela, não está na ação policial, mas em “ampliar a atenção da sociedade sobre o protagonista da violência: o homem agressor”.

“O autor do feminicídio chega ao extremo da violência por não saber reconhecer em si as diferenças e a fronteira entre o amor afetuoso e o sentimento possessivo e de ciúme. Frases como ‘se não ficar comigo, não vai ficar com mais ninguém’ ainda são comuns.”

E mais, indica: “Esse sentimento de posse é reforçado culturalmente quando a sociedade aceita figuras jurídicas ultrapassadas, como a ‘legítima defesa da honra’ e, até há pouco tempo, considerava aceitável que o homem ‘lavasse a honra com sangue’”.

“É preciso educar na escola, em casa, nas ruas, para que os jovens cresçam com o conhecimento de que a relação é baseada em amor e afeto, sentimentos capazes de construir um relacionamento sólido, de carinho e confiança”.

Finalmente, ela argumenta: “Por mais que pareça um paradoxo, a violência contra a mulher só vai deixar de existir quando a sociedade concentrar suas forças na educação dos homens”.

Em mais uma situação crítica, por conseguinte, encontra-se a educação como o melhor caminho à minimização dos problemas. Com mais conhecimento, inclusive, menores as chances não só das agressões contra as mulheres, mas do próprio obscurantismo seguir ganhando corpo no gosto popular.

À vista disso, não por acaso, a violência contra a mulher – particularmente em Tatuí -, entre outros temas, estará figurando uma das reportagens do primeiro especial do ano publicado por este jornal, “O Progresso da Mulher”, que circula no próximo final de semana, em celebração ao mês dedicado a elas – ou melhor, a vocês, jovens e longevas leitoras!