Os verdadeiros patriotas

Sem grande esforço, se qualquer indivíduo com um tiquinho de sensibilidade deixar de lado as predileções ideológicas, certamente chegará à conclusão de que, entre todos os profissionais em atividade no mundo neste momento, os da enfermagem merecem ser reconhecidos como os mais importantes.

Muito além disso, são dignos não só de respeito, mas de profunda admiração por estarem, de fato, arriscando a própria vida em meio a um combate sem piedade e tempo para acabar.

Ao lado dos demais profissionais de saúde – entre os quais, os médicos, naturalmente -, estão salvando vidas mais que em qualquer outra época da história. E o fazem por serem profissionais, por obrigação, sim. Porém, não só: o fazem por humanidade!

Estas observações são importantes porque humanidade é justamente o que se destaca em falta junto a grande parte do macabro cenário público da atualidade nacional.

É indiscutível que, ao mesmo tempo em que se somam vítimas fatais da Covid-19, só pode ser por ausência total de sensibilidade – de humanidade – que existam pessoas menos preocupadas em preservar vidas que em apoiar golpe de estado, inclusive em aglomerações públicas.

Não obstante, chega a ser sadismo, crueldade perversa, em meio ao rebanho de protofascistas, acabarem ocorrendo agressões físicas a enfermeiros e enfermeiras que só estão buscando melhores condições de trabalho.

Na verdade, em outras palavras, esses profissionais têm buscado apoio para não acabarem morrendo, na pior das hipóteses, por conta da rotina de trabalho, dada a falta de equipamentos de proteção e a própria balbúrdia no sistema de saúde, obrigado a não apenas lutar contra a pandemia, mas a equilibrar-se em um insano cabo de guerra entre governos estaduais e o federal.

Fora mais um motivo a se lamentar, é irônico (não engraçado, apenas irônico) agressões terem ocorrido logo antes do Dia Internacional da Enfermagem, celebrado em 12 de maio. Seria uma oportunidade de reconhecimento, de gratidão. Mas, não.

Fica, portanto, a obrigação de se notar a importância desse profissional pelo menos da parte de quem ainda guarda sanidade, respeito e, novamente, humanidade neste país.

Mais: esses profissionais precisam urgentemente do maior amparo possível, porque estão morrendo mais que a média mundial em razão dos atendimentos aos infectados pela pandemia.

Para se ter ideia, no início desta semana, foi divulgada estatística do Conselho Nacional de Enfermagem mostrando que, no Brasil, durante a pandemia, 4.128 enfermeiros já haviam sido contaminados pela Covid-19.

Entre esses profissionais, ainda segundo os números relativos ao começo da semana, 108 enfermeiros haviam perdido a vida – entre confirmações e suspeitas de óbito pelo novo coronavírus.

Em contrapartida e como exemplo da gravidade da situação no Brasil, o mesmo estudo aponta que, na Espanha – um dos países mais atingidos pela doença -, o número de profissionais de saúde mortos então chegara a 42 (somando-se também os médicos, não somente enfermeiros).

Da mesma forma menos dramática que no Brasil, o comparativo aponta que, na Itália (onde a pandemia se tornou motivo de comoção mundial), houvera 79 mortes (também somando-se médicos). Já nos Estados Unidos, epicentro da doença, até então, tinham ocorrido “27” mortes de médicos e enfermeiros. Vinte e sete!

Aí, o que se observa é o seguinte: por um lado, gente arriscando a própria vida para salvar a vida alheia – sem os devidos respeito, reconhecimento, paramentação e suporte técnico; por outro, uma horda de à toas – sem noção, sem educação, sem serviço e, com certeza, sem “amor no coração” – partindo para a ignorância em amplo sentido – mais até no cultural que físico.

Enfim, como boa parte da bestialidade ocorre justamente por falta de cultura, de educação, vale um registro histórico, o qual, quem sabe, possa contribuir com um pouco mais de respeito e até admiração por pessoas e profissionais realmente valorosos.

Doze de maio foi escolhido como o Dia da Enfermagem por ser a data de nascimento de Florence Nightingale. Nascida em 1820, na Inglaterra, ela se notabilizou pelo trabalho pioneiro e autodidata, iniciado em experiências pessoais durante a Guerra da Crimeia (1854-1856).

O exemplo deixado por Florence inspirou e continua inspirando inúmeros enfermeiros e enfermeiras no mundo. Em homenagem a ela, foi criada uma medalha em 1912 para reconhecer os enfermeiros e auxiliares de enfermagem que cuidam dos doentes e feridos em guerras ou desastres naturais de maneira extraordinária.

Conforme o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, “poucas pessoas tiveram um impacto tão forte na enfermagem quanto Florence Nightingale. Ela foi uma verdadeira inovadora, que alcançou o status de lenda ainda em vida graças às contribuições que fez à profissão de enfermeiro e aos cuidados com a saúde no geral”.

Como havia pouco treinamento formal para os enfermeiros na época, Florence praticamente foi autodidata. Ao aprender com a experiência, pôde não só se estabelecer como uma respeitável enfermeira, mas tornou-se uma das primeiras especialistas no mundo em higiene e saneamento públicos.

Durante a Guerra da Crimeia, ela e outras 40 enfermeiras se ofereceram voluntariamente para cuidar dos soldados feridos, no subúrbio de Istambul, onde enfrentaram as condições calamitosas do hospital de lá: sujeira, superlotação, ratos e falta de alimentos, roupas, médicos, equipamentos e remédios.

“Também teve de lutar contra a animosidade dos médicos, que a viam como intrusa. No entanto, sua extraordinária habilidade de organização, seu espírito empreendedor e sua firme determinação permitiram que tornasse o hospital mais eficiente e conseguisse que enfermeiras fossem aceitas”, ainda segundo o CICV.

De volta à Inglaterra, Florence trabalhou incansavelmente para promover as “causas que lhes eram tão queridas”: reformar o serviço médico do exército, mudar a estrutura hospitalar, desenvolver a medicina preventiva e melhorar o status e o treinamento dos enfermeiros.

E não é que a história teima mesmo em se repetir e, portanto, precisa ser conhecida? Daí também a importância de se valorizar a ciência e a educação, não só para se prevenir à clássica repetição dos mesmos erros, mas para ser menos ignorante. Isso seria ótimo para a humanidade e ruim para o novo coronavírus, algo por demais oportuno no momento.

Quanto aos enfermeiros, lembrando ser muito mais importante à nação salvar brasileiros que se enrolar em bandeiras e sair cuspindo perdigotos contra a democracia, eles são mesmo os maiores patriotas do momento.