O último debate

Henrique Autran Dourado

Quinta-feira, 22 de outubro.Segundo e último debate presidencial norte-americano na TV,após umencontro agendado anteriormente ser cancelado porque Donald Trump havia se recusado a discutir on-line. Simplesmente desistiu, sem insistir no “ao vivo” com a prepotência que lhe é peculiar. (Bom lembrar que ele ainda estava em fase de poder contaminar os presentes).

No primeiro debate, um Trump ensandecido se utilizava de todos os artifícios possíveis para monopolizar o encontro, uma verdadeira pirotecnia com que buscava perturbar o discurso do adversário. O mediador foi leniente quanto aotempo sempre extrapolado de Trump. Resultado: um fracasso para o presidente. Uma pesquisa da rede CNN deu a Biden 57% das preferências e 41% a Trump, abalando as hostes republicanas.

Se ao primeiro debate assisti com tradução simultânea por uma TV brasileira – ideia sobre a qual já teci neste espaço minhas restrições -, no encontro vice-presidencial (VP) entre Kamala Harris e Mike Pence houve mais comedimento por parte do republicano, sem o estrelismode Trump, e uma participação mais arrojada de Harris. Depois da tradução simultânea para o português do primeiro debate, para este encontro optei pela CNN americana, com letreiros em inglês – excelente, e acessível ao milhão de surdos funcionais e deficientes auditivos do país, fora os eleitores latinos, por exemplo.

Para oúltimo debate, já entre os candidatos à presidência, optei pelo site do NY Times, sem tradução ou legendas, bem mais eficiente: era possível unir palavras e emoçõesdos contendores de maneira especial.A mediação, a cargo da excelente Kritsten Welker, trouxe como novidade o controle dos microfones para que certos rompantes estrelados por Trump no primeiro debate não se repetissem – ao menos não a ponto de conturbar toda a discussão. (Cabe aqui lembrar um momento tragicômico: o velho Ronald Reagan, apagado da cena e como se surgido das cinzas, declarou à imprensa(sob o título “Dos anais da história dos microfones calados”), que estaria “pagando por este ‘momento microfone’”, tomando para si a novidade ao acatar a inovação, no passado). Kristen Welker permitiu algumas liberdades, sim, mas manteve tudo sob seu controle. O ambiente mais sereno, contudo, não aplacou algumas estocadas de ambas as partes.

Simbolicamente, Biden entra com sua máscara preta, e a retira antes de começar. Pouco depois, ao falar, ele a ergue, como fosse uma flâmula, lembrando a necessidade de proteção.

Houve troca de acusações, algumas infundadas, sobre ligações de ambos os lados ora com a Rússia, endereçadas a Trump, ora com a China, por parte de Biden. Inclusive sobre uma conta do primeiro em um banco chinês, maculando a assepsia do presidente em relação à sua escancarada “sinofobia”. Usando umvelho mote republicano, insistiu que os democratas iriam aumentar impostos, ao que Biden respondeu que não os dos pobres, sua intenção seria criar uma medicina “affordable” – possível de ser paga pela maioria -, melhorando e ampliando o chamado Obamacare.

Perdi a conta de quantas vezes Trump repetiu que Biden esteve lá (no poder) durante oito anos “e não fez nada” em relação a isso ou aquilo, esquecendo-se de que seu vice, Pence, nada fez como vice-presidente nos últimos quatro anos (como se Trump lhe desse esse espaço). Biden, focando em um ponto nevrálgico, o emocional do eleitor – já não são tantos os indecisos de que ele precisa -, lembrou as crianças separadas dos pais na fronteira com o México, enquanto Trump, aparentando naturalidade, retrucou que elas “estão sendo muito bem tratadas”, como se bastassealimentá-las e lhes dar teto.

Biden, mais uma vez, referiu-se a um certo racismo institucional, palavras que atingem em cheio Trump e seus apoiadores, entre eles os supremacistas brancos (como os Proud Boys e o Ku-Klux-Klan). Ao estilo de uma velha raposa brasileira, Trump se disse “a pessoa menos racista” do país e que, “à parte Abraham Lincoln, ninguém fez mais pela comunidade negra deste país do que eu”, sob irônicos sorrisos até de alguns republicanos na plateia, segundo o NYT.

No quesito clima e meio ambiente, um de seus pontos mais fracos, Trump saiu-se mal, tentou revertê-lo em seu proveito ao afirmar que Biden iria destruir a indústria carvoeira do país, entre outras poluidoras, jogando os poderosos industriais contra o democrata.

Umadas berlindas do debate, como era de se esperar, foi ocoronavírus. Mais uma bravata de Trump: “estamos vencendo esta luta!” Apontada como falsa pelos “fact-checkers” (verificadores de fatos) do New York Times, que afirmou: “na verdade, estamos em uma terceira onda”, e que os 70 mil novos casos diários são o maior número desde julho. Biden escorregou ao dizer que os estados republicanos do meio-oeste estavam tendo picos do vírus. Analistas da CNN acham que Trump esteve bem comportado, porém “mentiu mais”. Segundo a tradicional pesquisa da emissora, 53% acham que Biden venceu o debate, e Trump,39%.

Os próximos passos serão conquistar os indecisos, investirnos estados com mais votos no Colégio Eleitoral e cooptar os “oscilantes”: com Biden, estão Wisconsin (10 votos no Colégio Eleitoral), Michigan (16), Pennsylvania (20) e Florida (29), enquanto Trump tem, por escassa margem, Ohio (18) e Iowa (6). O resultado desta eleição será de grande impacto para o mundo e em especial o Brasil, seguidor incondicional da política trumpiana. A despeito da recente sobretaxa de 130% pelos EUA em nossa importação de alumínio.