‘O muse, o alto ingegno, or m’aiutate’1 as musas da MPB do passado – I

Começo esclarecendo que costumo chamar de MPB exatamente o que a sigla quer dizer por extenso, não apenas da bossa nova em diante. Neste artigo, o ano de cada música comentada será o do primeiro registro, primeira gravação ou da primeira partitura.

É difícil precisar quando a nossa música popular começou a dar nomes às paixões femininas, mas neste texto optei pela ordem cronológica, e encontrando tantos nomes fui obrigado a fazer escolhas. Há poucos registros do início do século, mas um marco talvez seja “Yara”, subtítulo Rasga o Coração, chótis (“schottische”) de Anacleto de Medeiros e do grande poeta popular Catulo da Paixão Cearense: “Se tu queres ver a imensidão do céu e mar / (…) rasga o coração, vem te debruçar”.

Saltemos para “Maria”, de 1933, sucesso de Ari Barroso e Luís Peixoto. Música de uma peça teatral, foi um tributo à atriz portuguesa Maria Sampaio: “Maria, o teu nome principia / na palma da minha mão…” De então para 1935, o de “Lalá”, marcha de João de Barro e Alberto Ribeiro, cheia de graça. Trata-se de uma deliciosa aliteração com vogais sobre o nome-título, terminando com a mulher da escolha do cantor, entre cinco moçoilas: “Lalá, Lelé, Lili, Loló, Lulu / amei Lalá, mas foi Lelé que me deixou /jururu”.

1937 foi o ano da “Rosa”. A de Pixinguinha, cuja melodia fora escrita 20 anos antes e a letra parece inspirada na perfeição de Vênus, deusa da beleza e do amor na mitologia grega, renascida carioca: “Tu és divina e graciosa / estátua majestosa do amor / por Deus esculturada…”, sem poupar, como se vê, exageros poéticos.

Em 1941, Antônio Almeida e Constantino Silva brindaram nosso cancioneiro com o samba carnavalesco “Helena, Helena”, que fez sucesso com o grupo Os Anjos do Inferno – “passei o resto da noite a chamar / Helena, Helena, vem me consolar”. O ano seguinte, 1942, consagrou o imortal modelo – machista, dirão hoje -, de companheira de todas as horas. “Ai meu Deus / que Saudades da Amélia, aquilo sim é que era mulher / Amélia não tinha a menor vaidade / Amélia que era mulher de verdade” joia de Ataulfo Alves e do versátil Mário Lago, homenagem à empregada da cantora Aracy de Almeida (e dicionarizada pelo Aurélio como mulher submissa!).

1945, do fim da II Grande Guerra, desencadeou um boom mundial de paixões e bebês, tão desejados e evitados durante o conflito. O ano produziu no país inúmeras oferendas amorosas, entre elas duas obras-primas. Uma é de Caymmi: “Dora, rainha do frevo e do Maracatu / Dora, rainha cafusa de um Maracatu”. “Dora” teve de competir com “Isaura”, do mesmo ano, da lavra de Herivelto Martins e Roberto Roberti, o cruel dilema entre ir trabalhar ou ficar com a amada: “Se eu cair em teus braços / não há despertador que me faça acordar…” O mesmo ano ainda nos brindou com “Maria Betânia”, do pernambucano Capiba, curiosamente homem do frevo e não do samba, canção que balançou as rádios no vozeirão de Nelson Gonçalves: “Tu és para mim / a senhora de engenho”, talvez uma forma de o autor rebaixar-se galantemente ao papel de escravo de sua musa, a melodia bordada com imensa tristeza.

O genial Caymmi reaparece em 1947 com sua “Marina”, de letra tão linda, um samba urbano mais à maneira do Rio pré-bossa nova do que das praias baianas: “Marina, morena Marina / você se pintou / (…) Marina, você já é bonita com o que Deus lhe deu / (…) desculpe, Marina Morena, mas eu tô de mal…”. O aparente dissabor ao ver sua amada “produzida” é ao mesmo tempo um elogio à beleza pura, que pode falar com suas próprias cores, seu jeito meigo, seus traços bem desenhados. Em conversa com o poeta Paulo Mendes Campos, o baiano disse que se inspirou em uma birra de seu então filho pequeno, Dori, que lhe disse “tô de mal de você”. Em 1949, “Chiquita Bacana”, de João de Barro e Alberto Ribeiro, fazia gracejos com… o existencialismo, dez anos antes de Jean-Paul Sartre conhecer o Brasil, em visita a Brasília com Niemeyer. Na sensual Martinica da França caribenha, com a casca de banana que vestia Chiquita, a música estourou nas paradas com a “rainha do rádio”, Emilinha Borba. Aproveitando-se do momento parisiense que perfumava as hostes boêmias e intelectuais do Rio, os autores apelaram para a sensualidade feminina, fazendo uma espécie de “chiclete com banana” com a filosofia da moda: “Não usa vestido, não usa calção / inverno pra ela é pleno verão / Existencialista (com toda razão!) / só faz o que manda / o seu coração”.

Por sugestão da “Estrela Dalva” de Oliveira, em 1952 Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira compuseram um baião romântico intitulado “Kalu”, codinome de uma paixão oculta (não se sabe de qual dos dois): “Kalu, Kalu / tira o verde desses olhos de cima d’eu / (…) você tá ‘mangando’ di eu” (mangar, verbo surgido no séc. 18: caçoar). Era o jeito dengoso com que só o velho Lua sabia galantear. O ano seguinte também foi do Nordeste, com Sebastiana, de Jackson do Pandeiro (autor de “Chiclete com Banana”), mestre do forró e do xaxado: “Convidei a comadre Sebastiana / pra dançar e ‘xaxar’ na Paraíba / ela veio com uma dança diferente / (…) e gritava A, E, I, O, U, Y (cantado ‘ipsilone’)”.

Descobrir a beleza desse repertório dedicado à mulher – seja um caso platônico, flerte, amor à primeira vista, namorada, esposa ou amante – é fácil, basta ouvir. Difícil foi escolher, entre tantas, e no fértil período que abordei, um meio século! (Cont.)

[1 ‘Ó musas, ó altos gênios, agora me ajudem’ – Dante: “A Divina Comédia”. Inferno, Canto II]