Nossa lí­ngua não é imexí­vel!





Em “Notas à Margem de uma Tradução”, prefácio de meu pai para “A Lenda de São João, o Hospitaleiro”, de Gustave Flaubert (1821-1880), trabalho a quatro mãos dele e minha mãe para a Ed. Record (1987), há uma anotação que cita frase do grande autor francês, segundo Maxime Du Camp: “… o escritor é livre, conforme as exigências de seu estilo, de aceitar ou rejeitar as prescrições gramaticais que regem a língua, e as únicas leis às quais é preciso se submeter são as leis da harmonia”. Para meu pai, Autran Dourado, o grande escritor francês sempre foi um de seus nortes literários, além de Machado de Assis e o norte-americano Faulkner.

Pois passaram-se dali apenas três anos, e tomava posse na presidência da República o Sr. Collor de Mello (1990-1992), na primeira eleição direta 29 anos depois de Jânio, que assumiu e renunciou em 1961. Era seu ministro do Trabalho e da Previdência Social o Sr. Antonio Rogério Magri, egresso do sindicalismo (foi eletricitário). Certo dia, no final de 1990, Magri discursava, quando provocou celeuma: “O salário do trabalhador é imexível”. Bateram no ministro de todos os lados, mas meu pai, fora da política e imerso na literatura, escreveu para a célebre coluna do Carlos Castello Branco no “Jornal do Brasil”, apoiando a palavra de Magri.

O ministro escreveu-lhe agradecendo a defesa, mencionando “a extraordinária sensibilidade social e humana de sua obra intelectual…”, etc. O bilhete foi enviado ao Castello, do JB, que o entregou pessoalmente ao Otto Lara Resende, para que chegasse ao meu pai. Assim Otto o fez, logo no dia 2 de janeiro de 1991: “Li seu bilhete na Coluna do Castello (…). A palavra era bem formada e portanto vernácula. O fato de não constar no dicionário, se de fato não figura, só depõe contra o dicionário”.

De fato, onde quero chegar, e pensando em Flaubert – em que pese o Sr. Magri ser pessoa de formação bem básica -, é a liberdade de quem faz a língua: o povo e os escritores, que a desenvolvem e consagram. O português não é língua morta, senão melhor seria voltarmos ao latim. A palavra foi incorporada pelo respeitadíssimo “Houaiss”, inclusive com seu antônimo “mexível”, e consta no “Vocabulário Ortográfico” oficial da Academia Brasileira de Letras.

Isso remete a um fato inusitado (“in”, prefixo latino que indica “negação” – para o que não é usual), palavra que alguém um dia inventou. Aconteceu comigo em ambiente acadêmico, local mais do que propício para mesquinharias. Eu havia publicado um livro chamado “Pequena Estória da Música”, uma diversão sobre fatos da vida musical na história. Tratava-se de uma óbvia citação brincalhona ao título “Pequena História da Música”, do Mário de Andrade.

Em uma reunião do conselho do departamento (comigo ausente), um professor, hoje com quase 90 anos e já de há muito aposentado, entregou espontaneamente um parecer sobre a publicação, muito embora não se tratasse de trabalho acadêmico, mas de prosa livre. Ele disse que não existia a palavra “estória”. Mencionou o “Aurélio” da época, mas o “Houaiss”, de muito melhor gabarito, a classificava como “narrativa de cunho popular e tradicional (1912)”, e mesmo que o mestre Guimarães Rosa escreveu seu “Primeiras Estórias”!. Na pressa, o colega deslizou e cometeu seu ato falho: disse que eu “estava ‘desidentificando’ a história”, inovando ele mesmo, porque usou palavra que não existia, à época, em dicionários (hoje o “Houaiss” já a incorporou). Foi a deixa para eu desferir um “touché”, que em esgrima é um golpe de ataque frontal bem sucedido. Escrevi que quem “desidentificava” era ele, usando o mesmo tolo argumento da não dicionarização da palavra. E completei dizendo-me surpreso por ver um acadêmico com a titulação dele citar o “Aurélio” como fonte, não era para uma universidade. Picuinha de ancião, ele discutia o indiscutível na falta de assunto e do que fazer. O “parecerista” aposentou-se pouco depois, talvez aquele tenha sido seu triste “canto do cisne” acadêmico.

Meu pai escreveu diversas cartas para editoras, reclamando de mudanças em seu texto. Em uma delas, “Aviso”, disse: “Há neles certas peculiaridades de estilo (…) palavras como perguntar, indagar, que não usam ponto de interrogação, por desnecessário, e sim vírgula, o mesmo com exclamar, gritar, seguidas de vírgula, e não ponto de exclamação”. E exemplificou: “Ela o vencia, perguntou ele” (com vírgula e não interrogação). E abriu a exceção: “Ela vai à cidade? disse Fulano. Aí, o “disse” me obriga ao uso da interrogação”. Questão de estilo, insistia sempre, com certeza lembrando-se de Flaubert.

Aconteceu um episódio com o grande maestro Eleazar de Carvalho, quando o mestre cunhou uma de suas célebres frases lapidares espontâneas: “O que não muda, não se move. E o que não se move está morto” (depois de indagado por um músico sobre o porquê de ele ter alterado sua maneira de reger certa peça). Mais do que nunca, encerrando o assunto, cabe também a histórica frase atribuída a Galileu Galilei (1564-1642) supostamente dita em voz baixa após interrogado pela Santa Inquisição, obrigado que foi a rejeitar sua própria defesa do heliocentrismo, que afirmava que era a terra que girava em torno do sol, e não o contrário, o geocentrismo, como mandava o dogma da doutrina da Inquisição. Teria resmungado baixinho, após sua confissão: “Eppur si muove” (e, no entanto, ela se move). Concluindo, juntando tudo, nossa língua no entanto se move, muda e não está morta. Por isso mesmo não é “imexível”.