Na Inglaterra, tal qual os ingleses





Parte II – Onde convivem tradições, culturas e religiões

(Antes de iniciar, devo esclarecer que não serei a favor ou contra uma ou outra coisa que passarei a narrar. Minhas opiniões guardarei para mim, já que o caro leitor deve ter suas próprias. Os assuntos nesta breve série se entrelaçam e se entretecem como uma tapeçaria, impossível pensá-los isoladamente).

Custa-me entender como uma nação que vive sob uma monarquia – aos olhos externos conservadora – possa avançar tanto dentro de seus próprios princípios e raízes. A Igreja Anglicana diverge das demais cristãs (assim como as outras entre si), mas já se distanciava do Vaticano antes da Reforma de Lutero. Com o tempo, a Igreja deixou de prevalecer sobre o Estado. Modernamente, foi concedido às mulheres o direito de exercer o sacerdócio em todas as suas prerrogativas canônicas. Este ano, no simbólico 14 de julho – data da tomada da Bastilha, marco da Revolução Francesa -, elas adquiriram também o direito de serem ordenadas bispas. A vitória, nessa segunda tentativa, se deu por esmagadora maioria. A repercussão foi imensa, e os defensores da mudança acham que a inovação atrairá mais mulheres para seus cargos e fieis para seus quadros. Claro, entre os opositores há uma minoria em desacordo com essas inovações. Citam a Bíblia, mas os liberais entendem que as Escrituras datam de milênios atrás, devendo, portanto, serem compreendidas sob a ótica dos dias de hoje, argumentando que não há, assim, desrespeito aos textos.

O avanço da questão feminina tem outros focos muito interessantes. Ora, o aborto é legal no Reino Unido há mais de 40 anos, enquanto outros países o empregam em parte e ainda o discutem (EUA), ou o eliminam das discussões (não cabe aqui analisá-lo sob o ponto de vista brasileiro, multifacetado como um caleidoscópio). No RU o aborto, à exceção de quando à mulher ou ao feto há risco de morte de um ou ambos, também é permitido por declarado impedimento de uma gestação ser levada adiante por incapacidade de a mãe cuidar de um filho, e casos são analisados um a um (reitero aqui minha advertência impessoal no início deste texto!). Há que se ouvir assistente social, psicólogo e obter dois laudos diferentes de médicos independentes. Obviamente, se por motivo de crença religiosa – já ficou claro aqui que o Reino tolera todas as religiões, as quais respeita em seus princípios particulares -, é facultada à gestante a decisão final, resguardados os citados casos em que o risco é iminente, caso em que prevalece a decisão dos médicos.

Nessa Inglaterra tida conservadora nasceram quatro rapazes em uma cidade portuária da grande Londres, Liverpool (coisa de uns 25 minutos de trem). Chamavam-se John, Paul, George e Ringo Starr, e fizeram uma revolução de costumes, sofisticaram o rock’n’roll americano e mudaram a música do mundo; lançaram moda e se tornaram heróis do Reino Unido, recebendo a mais alta condecoração das mãos da rainha. Houve algum reboliço (mas nenhum problema) quando declararam que antes da cerimônia fumaram maconha em um dos banheiros palacianos. Mas tratava-se dos Beatles, grupo que o lendário maestro Leonard Bernstein afirmou ser a maior conquista da música popular mundial do século 20, e uma revolução na música vocal.

Naqueles anos 1960, uma estilista inglesa chamada Mary Quant, a bordo dessa pacífica revolução de costumes, inventou uma peça chamada minissaia, que deu à modelo Twiggy o status de uma das maiores estrelas de sua década (de tão magra, em São Paulo a chamariam “pau de virar tripa”, para quem sabe como se faz uma linguiça). As garotas usavam a minissaia em três tamanhos: bem curtas, curtíssimas ou extremamente curtas. Pois na Londres de hoje ainda as vemos nas ruas, ônibus, metrôs, minissaias e microvestidos, shortinhos às vezes sumaríssimos, elegantíssimos, cada uma a seu modo. (Curioso: eu, vindo de um país “moderno” e “avançado”  – afinal, o Brasil é uma república plena de balneários, praias e mulheres lindas -, perguntei a alguns jovens do hotel se aquelas roupinhas não causavam algum mal-estar, gracejos ou revelavam olhos arregalados de estupradores em potencial. Segundo pesquisa infeliz feita pelo Ipea entre homens no Brasil, em 58,5%, depois corrigidos para uns 24%, roupinhas assim incitariam nos machões o desejo de estuprar quem as veste. A turma inglesa afirmou que nunca, nunca havia visto nada assim). Lembro-me agora de um livro de contos do Fernando Sabino (minha cópia traz autógrafo carinhoso do “tio”) chamado “A Inglesa Deslumbrada”. Nele, Sabino conta que durante um voo sentou-se ao lado de uma inglesinha, puxou assunto e logo sua companheira de viagem não resistiu à curiosidade: delicadamente, perguntou-lhe se era verdade que no Brasil pessoas andavam sem roupas (com certeza, deve ter visto fotos de indígenas brasileiros). Sabino respondeu que sim, os índios por tradição e os demais por causa do enorme calor, o que fez a moça esbugalhar os olhos. Foi um pouco assim que eu reagi ao pensamento do grupo londrino: cada um se veste como quer, e o costume individual, de roupas e manias a preferências afetivas, é assunto particular que não diz respeito aos demais cidadãos. Depois isso, senti-me um “brasileiro deslumbrado” com essa maneira livre de ver os outros e puxei outro assunto. Quanto à tal ridícula pesquisa do Ipea, fiz bem em não comentar: evitei passar a vergonha de ser visto como uma caricatura de latino vulgar vindo de um país machista e reacionário. (Continua no próximo artigo).