‘Mulheres ainda têm dificuldades para denunciar’, relata advogada





Mais de 27% das agressões contra mulheres registradas em 2014 ocorreram em domicílios. O indicador é apontado no estudo “Homicídio das Mulheres no Brasil”, publicado no ano passado, como tendo peso relevante nos casos em que mulheres se tornaram vítimas de crimes que terminaram em assassinato.

Embora “menos fatal”, a violência em Tatuí vem ocorrendo, como conta a advogada Luciane Ferreira. Na noite do Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, a defensora participou da aula inaugural do curso PLP (promotora legais populares).

Luciane busca, no grupo feminino comandado por Heloísa Saliba e Borges, apoio para ajudar quem está “no lugar em que ela esteve”.

Advogada há oito anos, Luciane atua nas áreas cível e trabalhista. Ela decidiu frequentar o curso depois de ter visto uma ação prática desenvolvida em novembro do ano passado. “Achei bacana e disse pra mim mesma que gostaria de participar de algo como aquilo no ano seguinte”, comentou.

Na ocasião, um grupo de 14 mulheres compareceu a uma sessão da Casa de Leis, pedindo a criação de uma comissão para estudar os casos de agressões contra mulheres na cidade. As manifestantes entraram com maquiagens que simulavam marcas e machucados de violência doméstica.

O intuito do projeto é formular políticas públicas para proteger os direitos das mulheres. A proposta foi apresentada para a presidência e ainda está sob análise.

A ideia chamou a atenção de Luciane e de outras dez mulheres que compareceram à primeira aula da quarta turma do curso. O evento aconteceu no auditório da Asseta (Associação de Ensino Tatuiense), tendo início com uma dinâmica.

Levada pela curiosidade, Luciane esteve no evento também para contribuir com o projeto. “Quero trabalhar, planejar e desenvolver ações como as quais já faço parte”, disse.

A advogada é adventista e atua junto a crianças na chamada “comunidade do café”. A região fica próxima à Rontan Eletrometalúrgica e de uma unidade da Igreja Cristã do Brasil. “Desde pequena, estou acostumada a trabalhar com projeto social. Na igreja, também desenvolvo ações”.

A vontade de levar o conhecimento adquirido com os trabalhos anteriores para as mulheres partiu, também, da experiência pessoal da advogada. Luciane sofreu violência por conta de um relacionamento conturbado, há quatro anos.

Ela contou que as mulheres ainda têm dificuldades em sair de situações desse tipo por uma série de motivos. As agressões podem ser verbais ou físicas. “Na minha visão profissional e pessoal, a mulher ainda sofre violência, mas ela não tem coragem de denunciar. Falo isso porque vivenciei”, relatou.

A advogada enfrentou um problema pessoal durante o noivado. Na época, teve um desentendimento motivado por traição. Os problemas vieram logo depois. “Não tive coragem de denunciar, mesmo conhecendo os meus direitos”, contou.

Segundo a advogada, a principal dificuldade não é a falta de informação, mas a condição de submissão à qual muitas mulheres são submetidas. Também há a questão do sentimento, que, em diversos casos, mantém as mulheres reféns.

“Há casos em que as mulheres não conseguem sair das relações. Daí, a pessoa faz; depois, ela pede desculpa e a mulher fica sempre esperando mudança. Esse não foi o meu caso. Eu terminei, mas percebi essa questão”.

O ingresso no curso voltado e frequentado só por mulheres deu a Luciane mais um motivo para continuar a apoiar pessoas. A advogada relatou que muitas mulheres optam por esconder a situação de fragilidade de parentes e vizinhos.

Por meio do direcionamento dado durante a formação para as participantes, a defensora espera poder colaborar com quem passou pelo mesmo problema que ela.

A intenção é “desenvolver mecanismos que possam contribuir para que as mulheres se libertem de um ciclo vicioso, alimentado, por determinados momentos, pelo medo e a vergonha de denunciar”.

“Mesmo tendo conhecimento, a mulher pode desistir, para não se expor, expor os filhos ou parentes. Além disso, muitas estão numa relação que as fazem se sentir culpadas por aquilo. Depois que passa é que isso é avaliado”, observou.

A advogada enfrentou o drama pessoal sozinha, não procurou por ajuda, mas espera contribuir para que outras mulheres tenham respaldo. O ingresso no curso é considerado um motivador para a defensora. “Me dá muito mais vontade de trabalhar”, descreveu.

A aula inaugural do curso teve início com dinâmica em grupo. Na sequência, a coordenadora falou sobre fatos históricos que culminaram na criação do Dia Internacional da Mulher.

Ela citou o surgimento de movimentos como a Conferência das Mulheres e disse que programou o início do curso para o dia 8 para “reforçar o sentimento de luta e para que a data não fosse desvirtuada”.

O evento contou com participação de formandas de anos anteriores, como a assistente social Mirna Iazzetti Grando. De modo a instigar as “novatas” a pesquisarem mais sobre os direitos, ela mencionou assinatura de portaria interministerial que regulamenta a lei que prevê a realização de cirurgias reparadoras de sequelas por atos de violência. O ato aconteceu no mesmo dia do início do curso.

As intervenções serão viabilizadas pelo SUS (Sistema Único de Saúde), em hospitais chamados de referência. No total, 400 instituições estarão aptas a realizar os reparos.

Mirna também citou dados divulgados pela presidência da República. Conforme ela, em 2015, a violência atingiu 750 mil mulheres, sendo 70% delas negras.

“Pelos números, podemos ver que as mulheres estão tendo menos receio de fazer a denúncia. Acho que é uma grande vitória”, comentou.

A aula seguiu com explicações sobre diferenças entre feminismo e machismo e leitura de texto. Heloísa também falou sobre a criação do curso PLP e as ações desenvolvidas pelas participantes, desde o início das atividades em Tatuí.

A quarta turma do município será chamada de “Antonieta de Barros”, nome de uma jornalista catarinense considerada pioneira no combate à discriminação dos negros e das mulheres. “Ela foi a primeira deputada negra do país”, lembrou Heloísa.

O curso iniciado na segunda semana de março tem duração de um ano, com aulas todas as semanas. As alunas têm direito a oito faltas no ano (quatro por semestre) e formação teórica. Para se formar, precisam desenvolver atividades que contam como prática de estágio, num total de 30 horas.