Mozart: uma paixão e um amor desmesurado





“Estou feliz porque tenho o que compor, o que é realmente minha única alegria e paixão” (carta ao papai Leopold, em 11 de outubro de 1777, uma declaração de vocação e destino). Que o jovem Wolfgang Amadeus Mozart, nascido em 1756, sempre tomou a música como sua mais elevada paixão, não há dúvida. Seu talento exuberante seduziu-o ainda bem criança (conseguia reproduzir de memória músicas ao cravo, ainda aos quatro anos de idade), ainda criança ouviu um certo “Miserere” na Capela Sistina e, de memória, repetiu-a depois ao cravo com perfeição. Virtude que levou até sua morte precoce, em 1791, aos 35 anos. Quando partiu, havia entregue ao mundo 41 belas sinfonias (mais 17 de origem duvidosa ou em trechos ou anotações), 22 óperas de variados gêneros, incluindo a “imoral” (para a época) “Don Giovanni e A Flauta Mágica”, ambientada nos rituais maçônicos e crítica à nobreza; 25 sonatas para piano (cravo), incluindo as 6 para dois executantes e uma para dois teclados, 36 para violino e piano e um enorme mosaico de obras, incluindo concertos, oratórios e um réquiem, entre outros. Compôs como quem rabisca, brinca (em alemão, “spiel” significa tanto tocar um instrumento quanto brincar) quase 800 obras, durante sua curta vida.

Quem assistiu ao filme “Amadeus” do Milos Forman (1984) viu uma história, romantizada e não muito interessada no chamado “rigor científico” como toda biografia no cinema. A fita arrebatou o Oscar e o Bafta de melhor filme, quatro Globos de Ouro, o BGA e muito, mas muito dinheiro. O texto de Schaffer não foi muito fiel ao apresentar fatos e pessoas. O mito do compositor Salieri como o homem que teria envenenado Mozart trouxe aquela pitada de mistério e traição tão ao gosto dos americanos. Não foi diferente com “Amada Imortal” (“Immortal Beloved”), filme de 1994 sobre a vida de Beethoven, embora este siga a primeira biografia do compositor, por Anton Schindler. Nem seria um outro sobre Schumann, “Sonata de Amor” (“Love Song”) ou sobre a vida de outros compositores.

No caso de Amadeus, salta aos olhos a figura brincalhona e zombeteira de Mozart, perfil que muitos escritos parecem dividir. É verdade que aqui e ali a personalidade tanto quanto exibicionista de   Mozart não ficava longe disso. Surgira desde os tempos em que papai Leopold o levava, ainda bem criança, a exibir-se no cravo ou no violino nos belos palcos da mais alta nobreza. O prodígio aglomerava pessoas e arrecadava dinheiro com facilidade, com o apelo da mística de seus apelidos “pequeno mágico” e “o predileto dos deuses”.

 Aos seis anos apenas, escreveu pequenos minuetos e um alegro, aos sete teve publicadas algumas peças, e aos 13 já se iniciava na composição de óperas, que viria a fazer dele o maior do gênero de todo o período clássico.

Ao retornar à Áustria, na cidade de Linz, após uma viagem, escreveu ao pai, em 1783, dizendo que não levava consigo nenhuma obra, mas teria que apresentar alguma coisa no dia 4 de novembro. O compositor havia chegado no dia 30 de outubro, e embora tendo laborado pouquíssimos dias, obteve grande sucesso com sua sinfonia nº 36, “Linz”. E na véspera da estreia da ópera “Don Giovanni”, Mozart compôs a abertura! As sinfonias 39 a 41 foram compostas em apenas sete semanas e dez dias. Uma fúria composicional ensandecida, desafiadora e até humilhante, para os mortais.

Conta-se que Haydn, fazendo troça, propusera-lhe um desafio: escrevera uma obra e, apostando uma garrafa de champanhe, duvidou que Mozart a tocasse. Este sentou-se ao teclado e, ao chegar ao final da leitura, deparou-se com as duas mãos nas extremidades graves e agudas, e uma nota solitária no meio do teclado. Não teve dúvidas: completou o acorde com o nariz, pegou a garrafa e saiu, entre as escandalosas gargalhadas de sempre.

O amor desmesurado começou aos 22 anos de idade, quando Mozart conheceu a ainda adolescente Constanze. Aturou-lhe as meninices, até em uma festa em que ela deixou um rapazola brincar de medir-lhe as panturrilhas. Repreendeu-a por carta, comparando aquilo a uma brincadeira que fizera, ele mesmo, com uma certa baronesa, mas já bem entrada nos anos, que não lhe despertava nenhum desejo (apesar da receptividade da nobre idosa).

Fazia palhaçadas até mesmo durante apresentações de obras suas, como brincar com carrilhões nos bastidores de sua ópera “A Flauta Mágica”. Com a morte de seu mecenas, Joseph II, a vida de Mozart começou a perder a graça e sua vida entrou em parafuso. Falava palavrões aos montes e escrevia besteiras nas cartas à sua amada Constanze, como “beijo-te 1.095.473.082 vezes”, ou “do teu Stu! Knaller paller. Schnip-schnap-schnur. Schnepepperl-Snai!”, coisas totalmente desprovidas de sentido.

Conta-se que Mozart, depois de toda a glória, terminou enterrado em vala comum com a presença de apenas duas pessoas e seu fiel cão – o que lembra a expressão popular “morreu com a boca cheia de formiga e um cachorro velho lambendo-lhe a cara”. Constanze sequer foi ao enterro, pois se encontrava muito doente, e apenas 17 anos depois foi procurar o jazigo, saindo desolada pois não se sabia onde estava o túmulo de seu amado ou se seus restos mortais haviam desaparecido. O gênio escapara até da separação pela morte. Mas seu crânio, creem alguns, foi surrupiado – talvez por alguém que quisesse tentar descobrir o que fizera daquele ser humano um que transcendeu os limites da inteligência e criatividade.