Monges carmelitas, beneditinos, tibetanos, dominicanos. E a quarentena

Henrique Autran Dourado

A Ordem dos Irmãos da Sagrada Virgem Maria do Monte Carmelo é uma congregação que deve seu início provável ao século 12. Perto da montanha que lhe deu nome (em árabe, monte Mar Elijah), é região produtora de azeite e vinho onde em 1948 foi fundado o Estado de Israel. Segundo a “Catholic Encyclopedia”, sua origem é incerta. A Ordem dos Carmelitas Descalços existe no Brasil desde o século 16.

O Rito do Santo Sepulcro é tido como tradição dos templários, e os Cavaleiros de São João Hospitaleiro uma antiga ordem religiosa-militar católica. O francês Gustave Flaubert (1821-1880) escreveu “La Légende de Saint Julien l’Hospitalier”, sem nexo aparente com a Ordem por razão desconhecida – mas ele remete à lenda. Meu pai, Autran Dourado, traduziu-o a quatro mãos com minha mãe, Lucia: “A Lenda de São João, o Hospitaleiro”. Em “Notas à Margem de uma Tradução”, comentam as ideias de Flaubert sobre o escrever, a flexibilidade da gramática e a arte de traduzir.

No Brasil, a Ordem dos Carmelitas Descalços (OCD) vem da seção portuguesa do Carmo, cercanias de Lisboa. Nas clausuras, as monjas dedicam-se à contemplação (“Maria escolheu a parte certa”: Lucas, 10:38-42), renunciando totalmente à vida mundana, amizades e família. Estima-se que hoje no mundo elas somem mais de 11 mil.

Também monge, um beneditino anônimo do século 13 escreveu “The Cloud of Unknowing”, que eu traduziria para “A Nuvem do Desconhecimento”. No Brasil, foi publicado como “A Nuvem do Não-Saber” – uma diferença aparentemente sutil, não obstante profunda, entre a eternidade do desconhecido e o que simplesmente existe, mas não é sabido.

Trata-se de exercícios espirituais cujo objetivo é chegar à alta contemplação via “desconhecimento”: o mistério da aproximação com o celestial, tanto quanto a imperfeição humana permite. Os religiosos medievais usavam essas práticas, em tudo similares às dos monges budistas tibetanos e do Lamanismo, do líder Dalai Lama, o mais alto posto na hierarquia. Os beneditinos da Idade Média comungavam da contemplação tibetana: o nada, o desconhecimento, ou a plenitude do nirvana indiano.

Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, é um frade dominicano conhecido por suas ideias afinadas com a vanguarda católica, o que lhe valeu prisões e a pecha de comunista. Voluntário em ações sociais como o “Fome Zero”, durante o governo Lula, Betto fez suas reflexões sobre o poder em “A Mosca Azul” (Rocco, 2006).

Em 1971 eu morava no Rio, e fui a São Paulo com mais dois amigos ver uma feira de desenho industrial. Queria aproveitar para visitar o Betto, no Presídio Tiradentes, condenado a pena de quatro anos após uma armação forjada pelo Dops, manobra frequente à época: “associação ao terrorismo”. Foi julgado com mais três frades. Um deles, Frei Tito, enforcou-se em um convento em Paris, vítima dos delírios persecutórios que tinha do delegado Sérgio Fleury, o abominado torturador. Um simbólico STF de então “reduziu” a pena de Betto para dois anos, quando ele já havia cumprido quatro – “haver” que nunca será saldado (ou esquecido). Contou-me que, enquanto recluso, contemplava – talvez assim tenha sobrevivido, na transcendência da eternidade daqueles anos para um átimo.

Passada a meia-noite, éramos três amigos chegando ao Convento dos Dominicanos em Perdizes. Recebeu-nos o frei Paulo, que nos xingou de tudo pelo adiantado da hora, mas nos hospedou e juntou-se a nós em uma roda de violão e caipirinha. Dia seguinte, depois do café da manhã, era outro Convento: fomos para uma espécie de átrio, onde os frades, silenciosos, liam suas bíblias ou meditavam, contemplavam em devoção monástica! Mas visitar o Betto? Nunca, o regime dele era incomunicável.

Vinte anos depois, eu o procurei. Saímos para um café, voltamos, um pouco de história e política. Falei-lhe de ansiedade e preocupação (andava com insônia). Betto então deu-me um exemplar de “The Cloud of Unknowing” (NY: Paulist Press, 1981).

Fazia os exercícios na ordem, em posição de lotus. Um dia, acordei sentado, dor no pescoço da cabeça caída, o sol nas frestas da janela: exercitando a mente, eu havia dormido!

Betto e eu nos vimos outras poucas vezes, a última em uma missa para a qual ele havia me convidado, em 2002, dedicada ao prefeito assassinado Celso Daniel. Igreja lotada, celebrou-a à frente de uma dúzia de frades, com direito a uma emocionante homilia, mesmo estando ele com o direito aos sacramentos “cassado” pelo Vaticano.

Da reclusão encoberta dos pés à cabeça das monjas da Ordem Carmelitas até o Rito do Santo Sepulcro e a Lenda de São João Cavaleiro, dos monges tibetanos e indianos aos beneditinos e sua “nuvem do desconhecimento”, da contemplação de Maria no Evangelho de Lucas ao isolamento inerente a esses estados espirituais, há muito para aproveitarmos dessa quarentena forçada pela pandemia. Fora da TV, videogames, novelas, leitura, redes sociais e comida: meditação, autoconhecimento, exercícios de abstração do mundo terreno e pensamentos – ou ainda melhor, a trabalhada ausência deles -, em períodos diários. Para os que creem, rezas ou orações.

A sintonia com o universo também está em várias modalidades de yoga ou suaves movimentos de Tai Chi Chuan. Os exercícios que nos elevam e ajudam a cumprir esses tempos de pena em nossos presídios particulares é um caminho para, durante e depois do isolamento social, absorvermos as sequelas para o retorno à vida que antes chamávamos “normal”. Se viajar neste período de quarentena tem sido difícil, também o será a volta.