Haddih, sua música multicolorida e a paz





Haddih é um pequeno povoado quase desconhecido que se espreme entre as fronteiras da Jordânia, do Iraque e da Arábia Saudita. Com pouco mais de 20 mil habitantes, consiste em uma espécie de pequena república, não oficializada e tampouco reconhecida. Sua instalação foi permitida informalmente pelos países limítrofes, uma vez que a regra maior, desde o surgimento do povoado, é a não beligerância: entre as raras proibições, o ingresso de armas, o que é natural quando se quer viver em paz. Lá convivem, desde o final da primeira guerra, judeus, turcos, curdos, armênios e palestinos, entre outros. Em Haddih todas as religiões são aceitas, desde que haja respeito de cada um à fé e à igreja dos outros. É comum a frequência de cristãos à sinagoga, e deles com os judeus à pequena mesquita local. Festividades religiosas são comemoradas ecumenicamente, como o Natal, o Hosh Hoshaná e o Mouloud (nascimento de Maomé).

Em Haddih homens e mulheres se cobrem, para enfrentar vento e temperaturas oscilantes. Mulheres não usam a burca, embora as idosas ainda mantenham a tradição; vê-se jovens com roupas refrescantes, no verão, e, como em qualquer lugar, à mão um copo de vinho gelado ou cerveja, de tradições milenares. Há raros automóveis, mesmo porque não são necessários, a não ser em caso de emergência. Há carroças, triciclos para aluguel e muitas bicicletas. O costume do naguilé também é permitido, embora não generalizado, pois trata-se de tradição antiga de alguns desses povos abraçados a uma vida contemplativa e sem extravagâncias. Os haddihitas produzem pão sem fermento, usando o próprio trigo e a cevada que também lhes permite fazer em pequena escala uma cerveja escura, encorpada, admirada nos países vizinhos por seu gosto forte e particular. Frutas da região, como tâmaras, além de arroz e carne ovina ou suína, são a base da alimentação local.

Para quem vê de fora, Haddih parece uma cultura pré-capitalista, mas nunca feudal ou monarquista. Surpreende a liberdade e a forma de governo, essencialmente democrata e cujos representantes são eleitos para cargos voluntários pela comunidade por sufrágio universal, entre os mais sábios indicados pelos eleitores, sem campanhas eleitorais, apenas discussões coletivas. Como seria natural, já há algumas gerações de várias origens casando-se entre si, e não há prevalência de uma religião ou origem sobre outras, apenas convivência. Um ancião de amplos conhecimentos e estudos é eleito uma espécie de magistrado, cuja palavra é acatada por todos. Cometer algum ilícito em Haddih, embora raríssimo, é algo tão malvisto pela sociedade que se torna impossível para o cidadão continuar vivendo no povoado, o que o leva a procurar outro local, outro país, às vezes por convencimento dos próprios cidadãos.

Carroças abastecem as feiras de rua, onde se compra batatas, tâmaras, nozes, carne seca, roupas, calçados e bijuterias de cobre com pedras coloridas. Os negócios são fechados de produto contra produto, na base da troca, e se alguma rara moeda surgir no negócio, como o ryial árabe e o shekel israelense, são negociadas simbolicamente apenas para troca, já que não há um câmbio oficial. Trocas com moedas são usadas quando o transporte da mercadoria à feira, como ovelhas e porcos, é difícil e oneroso. Há também pequenos leilões, em que os cidadãos se aglomeram, em clima de festa, e fazem suas ofertas.

A cultura é muito rica, dadas as origens que compõem o povo de Haddih, sendo bastante comum o uso de instrumentos musicais milenares, como o shofar e o kinnor judaicos, lado a lado com o qnanun, a pandora  e o tambura árabes. Mas não se espante se em um desses grupos encontrar instrumento bem ocidentais, como o violino, costurando melodias em comum com os demais. Logo, casais levantam-se a dançar e, para alegria geral, a debka árabe se junta a danças pastoris dos kibutz israelenses. Pequenas sanfonas de poucos baixos ajudam a animar a festa, e se algum violão surgir, também será bem-vindo. As representações teatrais frequentemente encenam motivos cívicos, como o surgimento de Hiddah, seus fundadores e precursores, e o culto ao Deus de todos os povos, à fertilidade da terra, ao sol de todos os dias e à alegria.

Em Hiddah há eletricidade apenas à noite, movida por geradores e cada vez mais pela energia eólica, em franco desenvolvimento, mas durante o dia as janelas e portas são generosamente amplas e permanecem abertas. Tentativas de se vender televisores com parabólicas ou internet, nos últimos tempos, não lograram êxito: o estilo de vida dos hiddahitas é refratário por natureza às inovações espetaculosas da cultura moderna. Os pais educam as crianças para profissões necessárias, como medicina, que elas deverão estudar com afinco com algum ancião. Já a música é parte de grande importância para a comunidade, assim como as artes cênicas e plásticas. E para entender o mundo ao redor e melhor se comunicarem entre si, o hebraico, o árabe, o persa e o grego são linguagens comuns. É notável ver as crianças desenvolvendo dois ou mais vocabulários e alfabetos, mesclando-os no que poderá ser um dia a linguagem particular da pequena comunidade.

Caro leitor, agradeço por ter compartilhado comigo essa alegoria. Hiddah não existe nem nunca existiu. Apenas criei o lugar para vermos que o mundo trilha muitos caminhos equivocados, consumido pela tecnologia desenfreada e pelo ódio constante entre os povos, ao invés de se preocupar com o futuro e o bem estar de seus filhos.