Guerra de ignorância: de cidadão a fanático

Entre ininterruptas inconveniências observadas na instável realidade do país, algumas preocupam mais que outras, mormente por se apresentarem como capazes de mudar a realidade – para pior – não apenas momentaneamente, senão por muito tempo.

Saber que quase um quinto da população crê, por exemplo, na “Terra plana” e que a missão Apollo 11 não passa de uma “fake news” de meio século pode ser tão cômico quanto impressionante.

Muito além, no entanto, indica a brutal escalada da ignorância. E o perigo é que a ignorância pode causar muito mais estragos e fatalidades que as guerras.

Aliás, o clima beligerante, constantemente alimentado pela explícita intolerância e falta de interesse pela conciliação, oferece o mais fértil território ao alistamento de soldados acéfalos, prontos a lutar a troco de praticamente nada e sem qualquer causa justa.

Na ignorância, não por acaso, encontra-se a maior propriedade do fanático, esse espécime social – infelizmente já não mais tão raro – que se reproduz feito roedores daninhos, particularmente a partir do cruzamento em redes sociais.

Seria por demais oportuno, consequentemente, o exemplo, de cima a baixo, de respeito a alguns pilares que, ao longo da história, elevaram a humanidade a patamares acima do pântano da ignorância e, assim, evitaram incontáveis problemas – inclusive, mortes.

Um destes pilares – talvez o mais sagrado – seja o chamado “estado laico”, algo que, aparentemente, não apenas está sendo gradativa e rapidamente desconsiderado, mas, pior, “desconhecido”! E isto – Deus nos acuda! – até pelas mais altas autoridades.

O estado laico consiste na neutralidade dos governos em matéria confessional, ou seja, em que não se adota nenhuma religião como oficial e mantém-se equidistância entre os cultos. É também conhecido como “Estado Secular”.

Nas civilizações ocidentais, o Iluminismo e a Revolução Francesa, no século 18, consolidaram a ideia e a necessidade do estado laico, em independência às instituições religiosas.

Por sua vez, o estado religioso é aquele em que a religião interfere de alguma forma na legislação ou na gestão pública, também chamado de “Estado Confessional”.

A alienação quanto à importância da separação entre estado e religião é um problema maior que a atual crise econômica, mais significativo que o futuro da Previdência, mais importante que a reforma tributária… E, justamente, porque pode impactar negativamente no futuro de maneira muito mais violenta.

Para se entender melhor o perigo, basta observar as regiões do planeta onde o estado laico é ignorado, onde impera o Estado Confessional, como no Oriente Médio e em partes da África.

O indivíduo pode até não ter interesse em história e noticiário internacional, mas, certamente, já ouviu falar em muita coisa relacionada a essas partes do mundo.

E nada bom, do tipo: terrorismo, opressão, ditaduras, execuções sumárias, total falta de liberdade e – o que não sai da moda da burca – “guerra santa”!

Ocorre que, no entendimento do indivíduo que deixa de ser “cidadão” do estado laico para se tornar “fanático” do estado religioso, ele não comete nenhum crime quando apedreja a mulher que o traiu, explode uma igreja cristã, atira aviões contra edifícios ou faz crianças e idosos feito escudos humanos…

E por quê? Porque, pela crença do fanático, tudo acontece conforme a vontade de Deus… Quem crê em Deus, tudo pode! Até matar. A vítima, na verdade, não é vítima: já é culpada a priori e, assim, previamente sujeita à pena capital, meramente por ser “pagã” – ou seja, por não comungar da mesma fé que os “santos guerreiros”.

Daí se percebe a importância secular do estado laico e, por conseguinte, do respeito que lhe deve ser guardado. Misturar política com religião pode ser, literalmente, fatal.

Mais um exemplo do perigo: a simples ponderação de que uma das instâncias de maior poder do país, o Supremo Tribunal Federal, deve levar em conta a religiosidade de seus integrantes é aterradora.

Seria um gravíssimo pecado contra o estado laico e, por derradeiro, contra a democracia e a mínima paz conquistada de maneira tão sofrida pelo país.

A questão não é os ministros terem – ou não – religião, mas a crença deixar de ser apenas algo particular, passando a critério para admissão na corte.

Senão, pondere: eventualmente, se fosse julgado por um ministro, você acharia justo ele levar em conta se você é católico, protestante, evangélico, espírita, budista, muçulmano ou mesmo ateu?

Se assim ocorresse, o julgamento poderia ser qualquer coisa, menos justo – tal como seria injusta e contraproducente a promoção de qualquer profissional em razão de sua crença, em desfavor à meritocracia.

Porém, a injustiça graça à solta, avolumando-se no país em todas as instâncias, certamente estimulada pelos extremismos. Em meio a isto, não obstante, o estado de São Paulo está dando belo exemplo, a ser seguido e atendido.

No primeiro semestre deste ano, a Secretaria da Justiça e Cidadania lançou a campanha “Respeitar o Próximo é Cultivar a Paz”, para alertar a população sobre a intolerância religiosa.

Em março, foram realizadas as primeiras atividades, com apresentação de palestras na sede da pasta, informados os canais para denúncias e divulgados materiais alusivos à campanha em redes sociais do governo do estado e de órgãos parceiros.

A campanha, além de pontos na capital, já ganhou o interior, sendo apresentada em diversas cidades, inclusive, Sorocaba, onde aconteceu o “Seminário Interativo: Dignidade, Cidadania e Inter-Religiosidade”.

A campanha busca, ainda, divulgar o Fórum Inter-Religioso para uma Cultura de Paz e Liberdade de Crença, da Secretaria da Justiça, criado pela lei 14.947/2013, para implantar políticas de enfrentamento e combate à intolerância religiosa e estabelecer um canal de diálogo entre as religiões.

O fórum reúne 103 membros, incluindo representantes de 23 segmentos religiosos, do poder público, de instituições e de organizações não governamentais que atuam na defesa do direito à liberdade religiosa.

Para informações sobre a adoção da campanha em outros municípios, os interessados podem contatar o fórum por meio do telefone (11) 3291-2631 ou pelos e-mails foruminterreligioso@justica.sp.gov.br evsoares@sp.gov.br.

Também tramita na Assembleia Legislativa o projeto de lei 226/2017, da deputada Leci Brandão, que estabelece punição administrativa à prática de atos discriminatórios por motivos religiosos.  O projeto inclui o pagamento de multas pelos agressores.

As denúncias de intolerância religiosa podem ser feitas no portal www.ouvidoria.sp.gov.br ou pelos telefones da Ouvidoria da Secretaria da Justiça: (11) 3291-2621 / 2624. O Disque 100 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, é outro canal que acolhe as denúncias.

Finalmente, sagrado e imperioso é reforçar que o estado laico – como este veículo de comunicação – não é contra a fé. Longe disto, é a favor de todas as religiões, embora não da sobreposição política de apenas uma, em detrimento a todas as outras.