Gèza Kiszely

Figura musical que todos deveriam ter conhecido

O povo judeu teve entre suas grandes habilidades, em sua trajetória nômade, o comércio e a música. Quanto ao primeiro, bastaria lembrar que, fincados na Holanda, de lá foram para os EUA – “Nação de imigrantes” título de um dos livros de John Kennedy, quer Trump goste ou não. Lá, fundaram New Amsterdam (1624), em homenagem à capital holandesa, depois New York, após a invasão inglesa (1664), e hoje é o centro do comércio do mundo.

Outra habilidade, a música, tem uma lista interminável de estrelas, em que predominam instrumentos de arco – o violoncelo de minha filha, que mora em Londres, pertenceu a Paul Wisa, que fugiu da Alemanha e dos horrores nazistas, a pedido do pai, levando consigo naquele cello as economias da família, à procura de um lugar no mundo com o instrumento a tiracolo. Nos campos de concentração os violinos eram tolerados porque, apesar das atrocidades, os soldados eram grandes apreciadores de música clássica, inclusive o próprio Hitler. Com isso, ao lograrem escapar ou serem libertados, às vezes conseguiam levar consigo seus violinos. A maioria dos grandes virtuoses do instrumento, e mais ainda depois da II Guerra, é de origem judaica: de Milstein a Heifetz, de Perlman a Zucherman.

No Brasil, para onde a família Kiszely imigrou, o pequeno Gèza era conhecido como George, nome mais fácil. Foi um violista e violinista da mão cheia, tocou em muitas orquestras brasileiras, inclusive o Municipal de SP. Eu o conheci em 1972, quando fui estudar na Fefierj, hoje UniRio, onde ele era professor de história da música e história da arte. O diretor da Fefierj era um general, interventor nomeado nos macabros tempos do Médici. Pois foi em uma aula do Kiszely, com slides projetando instrumentos indígenas, que vi mais um exemplo da ignorância que nos assolava. Abre a porta e entra o general Jayme Ribeiro da Graça, o diretor – hoje atitude inaceitável, intromissão dessas em sala de professor! -, que em determinado momento se levantou e começou um discurso bizarro, dizendo que flautas de osso eram coisa pré-histórica, pois a arte evoluiu (sic), hoje havia instrumentos como as flautas de prata, “infinitamente superiores”, e por aí vai.

O mundo deu uma volta, retornei do exterior anos depois, e, por ironia do destino, em 1989 tornei-me diretor da Escola Municipal de Música, onde Kiszely era professor. Falava, e como falava. Um dia lhe perguntei como vai, como está a vida, esperando uma breve resposta. Ouvi “minha mãe, quando veio da Hungria, nos pedia para vender pães para ajudar no sustento”, e daí desenrolava a saga de sua vida. Orgulhoso de sua excepcional memória, chegava a detalhes absurdos. Certa vez, eu ia fazer uma reunião com alguns professores, e ele contou para a excelente Laís Kauffman, já com certa idade mas, claro, vaidosa, que a viu tocando ainda criança, com um lacinho de tafetá, castiçais do piano acesos, ela com uns 12 anos – e isso foi em 1955, precisou. A memória prodigiosa o traiu: Laís levantou-se, furiosa, xingou e saiu.

Lecionamos juntos nas Oficinas Três Rios, embrião da ULM-Tom Jobim, hoje Emesp, coirmã do Conservatório de Tatuí. Pegávamos o metrô, na saída, e certa vez Kiszely convidou-me para tomar alguns drinques. Paramos em um bar, e também pediu salgadinhos. O tempo passou e a certa altura a conta já estava salgadinha como o torresmo. Veio a nota, e discutimos porque ele não queria me deixar dividi-la. Foi enfático, e naquela altura, alegre, confidenciou-me que o fardo de ser judeu lhe era bastante pesado, por isso tinha o costume de pagar todas as contas, para que ninguém o acusasse de mão fechada. Disse que se sentia bem com essas gentilezas, o sentimento atávico de culpa lhe parecia amenizar.

Casou-se em segundas núpcias com sua sereia do rio, Yara, violista, com quem formou um quarteto de cordas. Em meu segundo casamento deu-me de presente uma bela apresentação do grupo. Bufê simples, só para familiares e amigos, claro que pagou ao seu pessoal pelo mimo que me dera.

E contava tantas histórias, mas eram tantas! Uma delas logo me vem na cabeça: Kiszely, que chegou a morar no Recife, contou-me uma folclórica sobre um recital do lendário virtuose Jascha Heifetz – sim, ele mesmo -, em 1931. O Teatro Santa Isabel segue os padrões e gostos franceses, cultura impregnada na vida recifense. Ainda não havia ar-condicionado, e como o calor era enorme certa época do ano, havia algumas aberturas na parte superior, para que o vento refrescasse um pouco a sala.

Pois mal Heifetz começou a tocar, um dos ilustres visitantes contumazes do teatro, morcegos, entrou por uma abertura, tirou um voo rasante do gênio do violino, que parou e gritou, em inglês mesmo, “ou eu ou o morcego”, exigindo que os ingressos fossem devolvidos. Tiraram o público, e prometeram expulsar o invasor. Uma hora depois, Heifetz e plateia estavam a postos, e o virtuose terminou o recital profissionalmente, mas seco e frio.

Anos depois, um certo violinista, catedrático da Escola Nacional de Música do Rio, foi fazer um recital no mesmo teatro e lá veio um morcego em rasante. O solista, aproveitando a deixa do mito Heifetz, parou e gritou: “Ou eu ou o morcego”! – ao que o público, em coro, bradou “morcego, morcego”. Fim do show.

Kiszely nos deixou em 2010, mas dos momentos mais divertidos na carreira vários passei com ele.