Frevo: um outro Carnaval brasileiro





“A gente trabalha o ano inteiro / por um momento de sonho / pra fazer a fantasia / de rei ou de pirata ou jardineira / pra tudo se acabar na quarta-feira”. O “Poetinha” Vinicius de Morais, com a simplicidade e riqueza de sempre, bem descreveu o Carnaval: “a felicidade do pobre parece / a doce ilusão do Carnaval”, canta o início da estrofe. A poupança suada do ano inteiro para comprar o pano e costurar a fantasia, para um sonho de apenas três dias que termina na quarta-feira! Uma espécie de “ópio do povo”, talvez? Ora, aos muito ricos cabe a “happy hour”, a viagem ao Caribe, festas todos os fins de semana – um “ópio” bem mais longo e dispendioso do que a curta diversão dos que vivem nos morros e periferias.

Já escrevi muito sobre Carnaval, em especial sobre os desfiles das escolas, que a TV transfigurou de coisas simples, como blocos e cordões, até chegar à avenida como festa de pobre para rico e gringo verem, coisa que Mário de Andrade chamava de “macumba pra turista”. Estrelas da TV e modelos seminuas, sem samba no pé, tornaram-se o adereço principal dos desfiles, abrindo alas na imprensa e lentes das câmeras durante o “tríduo momesco”: uma gigantesca “selfie” global.

Mas existem outros Carnavais. Os franceses, os norte-americanos, como de New Orleans, os lendários Carnavais de Veneza, mas há outras lindas folias brasileiras que vale conhecer, em especial aquelas mais distantes do “sul-maravilha”, como dizia o Henfil. Uma das mais impressionantes é o do frevo, palavra que vem de “frever” – popular para “ferver”, dada a agitação da dança de ritmo frenético, no embalo da frevança (ou frevolência).

No Recife do final século 19 surgiram os sinais da nova dança, cujo nome mereceu o primeiro registro em um artigo de 1908 do jornalista Osvaldo de Almeida. O frevo mescla influências da capoeira e do maxixe à polca-marcha, tudo misturado em um caldeirão musical pelos músicos de bandas militares e civis, com rápidos dobrados, polcas, marchinhas e choros. Os instrumentos do frevo são adequados à portabilidade pelos músicos: clarinetas, requintas, saxofones, metais (trompetes, trombones e tuba) e percussão). Junto ao grupo de músicos segue o alvoroço da multidão, energizada pelo grande número de síncopas e contratempos com deslocamentos de acentos rítmicos. Os nomes dos passos vão de curiosos a divertidos: capoeira, coice de burro, ferrolho translado, parafuso, pernada e tesoura. Com sombrinhas nas mãos e passos quase olímpicos, a dança exige uma energia de folião e preparo de atleta.

 De Surubim (nordeste de Pernambuco) saiu o maior nome da história do gênero, o compositor Capiba (1904-1997), que já teve um trio (chamado “O Mundo Pegando Fogo”) com os magos Hermeto Pascoal e Sivuca.

O frevo guarda pouca ou quase nenhuma semelhança com as danças baianas, que têm profundas raízes negras, como batuques, maracatu e coco. O gênero pernambucano possui várias modalidades, como o frevo (ou marcha) de bloco, que usa instrumentos como flautas e clarinetas agregados a cordas como bandolins, violões e banjos, além da percussão. O frevo de rua é o ritmo típico do Carnaval pernambucano, é dança de agitação eletrizante, agitadíssima. As músicas do frevo de rua geralmente não possuem letra, pois é quase impossível dançar o ritmo e cantar, tanto pelo enorme movimentação corporal quanto pela sofisticação das linhas melódicas e o alto volume do instrumental. Há também o frevo de abafo, cuja música exige dos metais (trompetes, trombones e bombardinos) notas longas em alto volume; o gênero serve, como o nome sugere, para o grupo abafar o som de uma outra banda que se aproxima.

E há o melancólico frevo-regresso, que canta a saudade e a tristeza do retorno, nas madrugadas das quartas-feiras de cinzas, cortejo para casa ao fim dos dias de festa. E o frevo-canção tem similaridades com o samba-canção carioca (comum nos bailes), mas tem personalidade própria, não é um afluente do gênero do Rio de Janeiro. O frevo tornou-se muito popular no Brasil inteiro com o conhecido Vassourinhas (no plural mesmo), composto por Matias da Rocha e Joana Batista Ramos em 1909 para o baile do Clube Carnavalesco Vassourinhas. Além de ser a música mais tocada e repetida nos Carnavais de Olinda e Recife, Vassourinhas costuma ser parte da agitação dos finais de baile, junto com “Cidade Maravilhosa” e o hino do Flamengo, cantado por todos os torcedores, para levantar o pessoal. Quem não conhece a letra “Se essa rua fosse minha / eu mandava ladrilhar / com pedrinhas de brilhante / pra Vassourinhas passar”? (Depois, universalizando a música, passou-se a cantar “com pedrinhas de brilhante / para o meu amor passar”). É o fim de baile no Brasil inteiro, preparado pelo descanso da lindíssima marcha-rancho “Máscara Negra”, de Zé Keti, em ritmo bem lento: “Tanto riso, oh, quanta alegria / mais de mil palhaços no salão / arlequim está chorando pelo amor da Colombina / no meio da multidão”. Voltando ao frevo, por sua importância cultural, o gênero foi declarado Patrimônio Imaterial da Humanidade em 2012 pela Unesco.

O Sudeste e Sul brasileiros não elevam à altura devida a importância cultural de Pernambuco para o país, e na música popular, seu frevo, folguedo surgido bem antes da formação da primeira escola de samba carioca (Estácio de Sá). O espetáculo da frevança agita o público, acelera corações, sangue a “frever”, contagiando a todos com uma enorme e luminescente alegria.