Foi o árabe que passou em nossas vidas

Outro dia, conversando com um amigo, lembrei-me de uma piada que fiz com aldrava (ad-drav), ou aldraga, palavra de origem árabe que desembarcou no Brasil via portugueses. A influência moura na Península Ibérica se deve à ocupação de Portugal e Espanha por 781 anos (711-1492)!  Ou seja, toda a existência do Brasil mais 263 anos! Ah, e a aldrava? (É um daqueles pêndulos metálicos de portas das residências, igrejas e castelos dos tempos d’antanho). Troquei Algarves por Aldrava, região de Portugal, e ficou Reino Unido a Portugal e Aldrava, ao invés de Algarves – o novo Reino que substituiu a Colônia de 1815 até 1822, quando da independência do Brasil.

Pois lá ia eu pensando em minha bela aldrava, que custei a encontrar na internet. Um “door-knocker” (batedor de porta), já que no suporte está gravado “welcome”. E não é que logo me veio em conta o tanto de árabe trazido para nossa língua, costumes e cultura, pelas mãos dos patrícios da terra de Camões? Fui pinçando dicionários, pescando aqui e ali, e “de prima” vi achaque (ax-xaqq), no Brasil sinônimo de exploração de alguém, coisa de bandidinho ou estelionatário de alto quilate (qirät). “Fulano era mestre em achacar negociantes alegando ser irmão de um policial” – se não desse o azar (az-zahr) de ser dedurado por um alcaguete (al-qawwâd) a um delegado de verdade, distintivo na corrente e terno cortado por alfaiate (ár.: al-hayyât).

E vieram aduana (ad-dwana), a alfândega (al-fundak) dos portos dos que voam e dos que navegam – pobres nadam em açude (az-sudd), que é uma barragem muito comum em nossas zonas secas, longe do colorido azul (lazürd) das piscinas dos ricos. Na música, lindo som tem o alaúde (de al-oud, “a madeira”), precursor do violão! Os mestres sabem tocá-lo com melismas (ornamentos) mouriscos, acompanhados por uma suave alfaia (al-hãiâ), tambor rústico, e um adufe (ad-uff), pandeiro sem as soalhas (aqueles pratinhos) tal como os da congada e do bumba meu boi.

Cai bem levar à brasa aquela carne bem escolhida no açougue (as-suk) do seo Mansur (ár.: vitorioso na guerra), também dono do armazém (al-mahazén) e bom escolhedor das arrobas (ar-rüb) de gado da melhor alcateia (al-kataia), reses (ár.: rä’s) criadas com a melhor alfafa (al-hâfa). Para beber, reza a tradição dos apreciadores do álcool (al-kuhul) bem regrado nas refeições que aquela mistura de limão (laymün) deve ser feita com pinga de alambique (al-anbiq), engenhoca que vem dos tempos da alquimia (al-kïmïa). E não se esquecer de amassar o limão com açúcar (as-sukkar) antes de misturar.

Para completar o repasto, sirva a alface (al-khass) da salada nossa de cada dia com tomate, farofa e azeitona (az-zaytünah), tudo regado a vinagre e azeite (az-zayt) e acompanhado por um bem temperado arroz (är-ruzz). E antes de servir o principal, que tal uma deliciosa alcachofra (al-kharshof), embebida sem parcimônia em molhos suaves ou picantes? Trata-se de uma planta que costumava ser apreciada pelos alcaides (al-qaid), chefes, que hoje é alcunha (al-kunia) usada entre nós para os prefeitos. Já alcaloide vem de álcalis (al-qalyi), e é uma substância extraída de plantas ou fungos, mencionada até pelo genial poeta Manuel Bandeira em sua “Vou-me Embora pra Pasárgada”: “lá tem alcaloide à vontade / tem prostitutas bonitas / pra gente namorar” (no caso, o alcaloide seria o proscrito cloridato de cocaína).

E se um dia for a Pasárgada, leve deliciosas alcaparras (de al-cabbar) para topping ou tempero: ela é tida como afrodisíaca e também pode ser deixada perto do “ninho de alcova” (al-kabu), quarto do amor. Já o alecrim (al-iklil) é uma erva cheirosa que cresce nas terras mais altas da região mediterrânea. O tipo nascido por aqui enriqueceu nosso cancioneiro infantil: “Alecrim, alecrim dourado / que nasceu no campo / sem ser semeado”.  Perfumada é a alfazema (al-khuzâma), uma espécie de lavanda que serve para fazer uma boa água de colônia ou de cheiro.

Nessa altura do texto, faz muito que o leitor percebeu que tentei – e o fiz sem a menor intenção de bancar o linguista ou arabianista – listar palavras de origem árabe do nosso idioma. Comecei pela nossa vogal “a”, isolada ou seguida por “l”, “z” ou outras consoantes que lhe dão complemento. Calculo que há mais vocábulos árabes em nosso dia a dia – especialmente no Sul-Sudeste – do que dos nossos senhorios índios, de quem somos inarredáveis inquilinos. Uma breve reflexão basta para o espanto: pesquisei apenas a letra “a” – e olhe que temos até “z” em nosso vocabulário para serem exploradas. Em nossa comida, nossa música e dança, folguedos, instrumentos, arquitetura, azulejos (az-zulayj), em tudo o mundo árabe está presente.

Quem nunca leu o Corão (o al-kurän) deveria. Há ali os ensinamentos que nem tanto ou pouco divergem da bíblia judaica (Torá) ou do Antigo Testamento cristão. Amar a Deus – um só Deus – sobre tudo, temer a Deus, os três livros coincidem em boa parte. Agora, cuidado: muçulmano não é o EI ou A-Qaeda, Hitler nunca foi exemplo de cristão e Ovadia Yosef, líder ultraortodoxo judeu que pregava o extermínio dos árabes, o foi do judaísmo. Esses são extremistas bem ao largo de sua fé. Há espaço para convivência e irmandade em um só grande abraço a circundar do mundo. Grandes líderes mundiais e seus admiradores não devem tomar atitudes impensadas ou por interesse unilateral que incentivem o ódio de uns contra os outros – ou o ocaso da desarmonia nunca virá. Já é um desejo enorme para 2019.