Especialista defende ‘uso’ do patrimônio

A torre do complexo São Martinho, considerado o maior patrimônio predial do município

Em palestra na noite do dia 28 de fevereiro, quarta-feira, no teatro do CEU das Artes (Centro de Artes e Esportes Unificados “Fotógrafo Victor Hugo da Costa Pires”), a arquiteta especialista em restauração Fernanda Craveiro Cunha pormenorizou todo o processo de reconhecimento formal dos patrimônios históricos, sejam prediais ou imateriais.

O auditório esteve lotado para acompanhar a palestra “Patrimônio Cultural: Identidade, Memória e Técnica”. A palestrante é formada em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (FAU-USP) e especialista em conservação preventiva pelo Instituto del Patrimonio Historico Español de Madrid (IPCE).

Ainda é pós-graduada em gestão de obras e restauro, pelo Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (Ceci), e mestre em planejamento e tecnologia, com ênfase em tecnologia de construção de edifícios, pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).

Atua na área de preservação do patrimônio edificado desde 2004, além de ter trabalhado em diversos escritórios de arquitetura.

Em paralelo, é professora convidada do curso de gestão de obras de restauro, pelo Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (Ceci) e autora do livro “Pedra Fingida: Protagonista Invisível do Centro de São Paulo”.

Atualmente, é diretora e sócia-fundadora do escritório Estúdio BIC, especializado em estudos técnicos do patrimônio arquitetônico

Fernanda iniciou apontando que a preservação de patrimônio implica em estudos de “Identidade e memória”, além das questões técnicas. Ela explicou que, ao longo do tempo, o conceito de patrimônio foi sendo alterado em paralelo aos tombamentos, chegando a ganhar o termo de “bens de interesse cultural”.

“Dia a dia há alteração nas questões de preservação de patrimônio”, observou. Basicamente, no entanto, firmou que “patrimônio é algo construído com a nossa vivência”.

Exemplificando, citou a “Carta de Burra”, do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, segundo a qual, “patrimônio é um local, uma zona, um edifício ou uma obra construída, ou um conjunto de edificações ou outras obras que possuam uma significação cultural, compreendidos, em cada caso, o conteúdo e o entorno a que pertence”.

A significação cultural – ou interesse cultural -, especificamente, pode ser compreendida como o valor estético, histórico, científico ou social de um período para as gerações passada, atual e futura.

Valendo-se de observações a partir da pirâmide de Queóps, erguida há cerca de 2.500, a pesquisadora sustentou que o conceito de patrimônio foi ganhando novos significados, de tal forma que, na atualidade, já abarca muito além dos edifícios.

Antes, porém, não se dava valor às edificações – muitas vezes, sendo elas depredadas ou simplesmente pilhadas em suas estruturas para a construção de outros edifícios.

A primeira ideia de se salvaguardar os patrimônios para as próximas gerações aconteceu durante o Renascimento, mas, ainda, somente em se estudar os modelos da antiguidade, não necessariamente em preservá-los.

A preocupação efetiva com a preservação de história, seguiu a professora, só aconteceu no século 18, com o Iluminismo. Pela consciência da necessidade de preservação, surgiu o medo da perda dos patrimônios e consequentes ações de preservação.

Os primeiros movimentos, no entanto, estiveram restritos aos grandes monumentos, os chamados “edifícios magníficos”, como o Coliseu de Roma, e limitados às suas representações figurativas, dada a falta de técnicas para preservá-los efetivamente.

Já no século 19, houve a expansão do colecionismo de objetos históricos, entre os quais, não apenas os edifícios, mas os bens de interesse cultural, como os objetos de arte. “É nesse momento que surgem os movimentos de restauração. Daí por diante é um caminho sem volta”, contextualiza a especialista.

Identidade e apropriação dos bens culturais fundamentam o interesse pela preservação a partir de então. “A gente cuida do que a gente gosta, do que quer guardar para a futuro”, acentuou Fernanda. “Faz sentido cuidar de algo com que se identifica. Isso forma a nossa cultura”.

Nesse sentido, Fernanda reforçou que bem de interesse cultural é algo que “nós consideramos importante”. Daí nova mudança no conceito, exemplificado em publicação do  Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 2003:

“Bem de interesse cultural é um elemento que, por sua existência a característica, possua significação cultural para a sociedade, como valor artístico, histórico, arqueológico, paisagístico, etnográfico”.

“Houve um alargamento do conceito de patrimônio. Ele deixou de ser só o monumento ou objeto cultural e passa a incluir contextos culturais. Nesse momento, as tradições, os saberes, os valores e os sentimentos surgem como aferidores de legitimidade de patrimônio”, detalhou.

Casebres podem definir um modo de vida, por exemplo, merecendo a preservação. Da mesma forma, as especificidades biológicas, subaquáticas, paisagens urbanísticas e as construções industriais, como as fábricas têxteis em Tatuí, independentemente da beleza de suas arquiteturas.

Ainda mais recentemente, os bens de interesse cultural já extrapolaram ao reconhecimento, em outro exemplo, do acarajé como patrimônio cultural: chegaram ao que Fernanda explica como “lugar de memória”.

“Um conceito tão recente que muita gente tem dificuldade para entender”, reconhece a especialista. Exemplificando, lembrou o tombamento do Cine Belas Artes, na cidade de São Paulo.

“Ele foi tombado não porque é um edifício belíssimo, mas porque aquele lugar é importante como cinema. As pessoas pediram o tombamento, foi um pedido afetivo. É um lugar de memória.”

Entre diversos aspectos, a especialista resumiu que o atual processo de preservação implica em “tradições, saberes, valores e sentimentos”.

A sequência da palestra focou nas técnicas de preservação, as quais Fernanda detalhou, reforçando a importância de a prática ser feita por profissionais qualificados, até para se, realmente, garantir a “preservação” dos patrimônios – em específico, os prediais.

Pontuando as diversas técnicas, a especialista defendeu que nem sempre o restauro é a melhor opção. “Na verdade, é uma intervenção bastante invasiva. Tem que ser a última das soluções”. Isso porque, também, não garante a “reversibilidade” – ou seja, a possibilidade de se resgatar as características primárias das edificações.

Antes, o ideal seriam a manutenção permanente e a conservação. “Recomenda-se que se conserve ao máximo”, reiterou a especialista, acentuando serem as prioridades de conservação diferentes, conforme cada edificação.

Maíra Barros, Fernanda Craveiro Cunha, Davison Pinheiro, Cassiano Sinisgalli, Natalie Sallum e Rogério Vianna

Patrimônios em Tatuí
Fernanda comentou sobre a afetividade que pode elevar algo corriqueiro a um bem de interesse cultural. Em Tatuí, por exemplo, contou que a primeira “pesquisa” dela nesse sentido nem foi sobre os antigos edifícios têxteis.

“Conheci, hoje, o bolinho de frango. Fiz questão!”, contou, surpreendendo e ganhando risos da plateia. “Crio vínculo com questões afetivas porque sou apaixonada por preservação”, emendou.

“Isso (valorizar os patrimônios) é importante para vocês, que são de Tatuí. Isso é história da cidade”, comentou, relembrando que o bem “imaterial” também é importante. “Não só a culinária. Vocês (tatuianos) são a Capital da Música! Isso é patrimônio!”, sentenciou.

Fernanda finalizou a palestra agradecendo e “invocando” os tatuianos a “olharem para a cidade com mais orgulho, entendendo que cada um pode fazer a diferença”.

Para tanto, a especialista explicou existir, no meio de preservação, a prática compreendida como “zeladoria”. “Zelo é cuidar com afeto. Significa que vão olhar para a cidade de vocês de uma forma diferente”.

“Espero que vocês olhem para o que têm de memória, concreta ou não concreta, material ou imaterial da cidade, valorizem isso e tenham um baita de um orgulho”, frisou a arquiteta.

Por outro lado, Fernanda lembrou que os “novos usos” dos patrimônios prediais dependem de investimentos, como a utilização deles para empreendimentos comerciais.

Entre o bem de interesse “cair aos pedaços” por falta de manutenção ou ser objeto de alguma incorporação empresarial, Fernanda deixou evidente a preferência pela segunda opção. “O uso salva”, acentuou.

Fernanda ainda lembrou que qualquer cidadão pode pedir o tombamento de algo que entenda ser patrimônio, embora seguindo os trâmites formais junto aos órgãos responsáveis – na cidade, particularmente, o Condephat (Conselho do Patrimônio, Histórico e Artístico de Tatuí).

Para isso, é preciso estudo e, em seguida, se fundamentado o pedido e aprovado pelo conselho, inicia-se a chamada APT (Abertura do Processo de Tombamento).

Maíra Barros, presidente do Condephat – entidade que viabilizou a palestra em Tatuí, juntamente com a Secretaria Municipal do Esporte, Cultura, Turismo, Lazer e Juventude -, presente no evento, apontou a necessidade de se implementar uma lei municipal de tombamento, “que permita que o órgão atue mais efetivamente”.

Desde a nova composição do conselho, em meados do ano passado, a presidente informa que foi criado o regimento interno e estão sendo elaboradas premissas de tombamento para futuras ações.

Entre os diversos espaços locais a serem objeto de estudo – além do complexo da Fábrica São Martinho, que já é tombado -, Maíra destacou o Mercado Municipal. “Precisamos articular de uma maneira que atenda à população e também valorize o patrimônio, que está muito escondido”, observou.

Outro que acompanhou a palestra foi o secretário da Cultura, Cassiano Sinisgalli. “O tatuiano gosta e quer a preservação de seu patrimônio, mas, também, como ela (Fernanda) falou, é preciso ocupar esses espaços, isso é muito importante’, comentou.

“Gostaríamos que os usos fossem culturais”, acrescentou Cassiano, mas, também, reconhecendo a importância do investimento da Coop no edifício da antiga fábrica Santa Adélia.

“Está sendo muito bem utilizado, gerando emprego e sendo conservado, o que acho o principal. Isso mostra os dois lados da moeda, não sendo algo radical”.

Quanto ao complexo da São Martinho, Sinisgalli lembrou que, recentemente, os familiares proprietários do local estiveram na cidade e, na Prefeitura, anunciaram investimentos que poderiam redundar em novo uso para o espaço.

“A gente fica na expectativa de que eles possam, realmente, conseguir a verba para transformar aqueles prédios, que são uma referência cultural da cidade. Com as casinhas dos moradores, aquilo poderia se tornar um verdadeiro centro histórico de Tatuí”, aventou.

À reportagem, depois da palestra, Fernanda, confessou ter ficado “encantada” com o complexo da São Martinho. “Já tinha visto fotos. Usei uma (imagem da fábrica) justamente na apresentação, mas não fazia a menor ideia da imensidão e da beleza desse conjunto. Fiquei muito impressionada”.

Por outro lado, Fernanda lembrou o fato de não caber ao Condephat a função de restaurar os patrimônios, mas o de validar e fiscalizar a manutenção dos bens de interesse culturais. “Esse dever é do proprietário”, reforçou.

Os obstáculos partem dessa realidade. “É difícil, porque são trabalhos onerosos. Restaurar é caro”, reconheceu. Inclusive, apontado ser assim “em todos os lugares do mundo”.

Por essa razão, Fernanda defende os incentivos do poder público, como isenção de impostos e a chamada “TDC” (transferência do direito de construir), pela qual o proprietário do patrimônio tombado pode transferir para outro imóvel o potencial construtivo que ele poderia ter se o imóvel dele não fosse protegido.

Financiamentos a fundo perdido também seriam alternativas para as restaurações, tal como outros modelos de ofertas de recursos. “Não é simples para as contas do poder público equalizar essas questões, mas esses incentivos são imprescindíveis para ajudar os proprietários na preservação”.

“A São Martinho, por exemplo, é muito grande. É oneroso, pela imensidão e pelo serviço altamente especializado (necessário para o restauro). Mas, é possível”, apontou a especialista.

Como exemplo dessa viabilidade, destacou o Pátio Ciané, em Sorocaba. “Houve um empreendimento que trouxe retorno financeiro e, em contrapartida, foram restaurados os galpões remanescentes. Trouxeram uso para esses galpões”.

“Todo munícipe de Sorocaba tem orgulho daquilo. Todo mundo visita. É lindo! Está vivo e tem uso!”, comemorou. “A meu ver, é primordial a manutenção e o uso, porque isso vai garantir que esses edifícios perdurem para as próximas gerações”.

Sobre o investimento da Cooperativa de Consumo em Tatuí, Fernanda observou: “A gente tem que se adequar à realidade. O uso é fundamental. Então, é louvável que a Coop tenha se instalado (na antiga fábrica central de Tatuí)”.

Finalmente, Fernanda defendeu as vantagens de utilização de prédios antigos no âmbito da sustentabilidade. “Em um edifício pré-existente, você está aproveitando essa estrutura, não está demolindo, jogando nada, nenhum entulho, não consome cimento – que é altamente poluente”.

Além disso, na opinião de Fernanda, por exemplo, “uma loja fica muito mais charmosa, muito mais interessante em um imóvel antigo, restaurado”. “Agrega valor. A população abraça esses edifícios, porque se idêntica com eles. Esse valor vai além da questão estética”, concluiu.