Escola sem sentido

A EMC, Educação Moral e Cívica (versão tupiniquim do “Enseignement Civique” francês) foi uma disciplina criada na ditadura Vargas (1940) para ser aplicada em todas as séries do ensino escolar. Mais leve e coerente, no intuito de seduzir os alunos, o governo Goulart, em 1962, havia criado a OSPB (Organização Social e Política Brasileira), abordando aspectos diversos de nossa sociedade, com um pé no nacionalismo caudilhista. Em 1969 – ainda na ressaca de 1968, “o ano que não terminou”, Costa e Silva fez uma reedição por decreto, com força de lei, para controlar as discussões e questionamentos que contagiavam a juventude. Em 1993, por iniciativa de Itamar Franco – e “quae sera tamen” -, a disciplina foi revogada, “pois em um regime democrático não mais caberia tal camisa de força”. Ela no fundo colhia o contrário do pretendido: a revolta, pois que feita para coagir, “fazer a cabeça” e aquietar os estudantes.

Lembro-me da fase até 1977, tanto quanto me lembro do ódio que os alunos sentiam ao assistir a uma aula chata, forçada e mentirosa. Usaram toscamente modelos estrangeiros, como o “American Government” e o “Constitution and Government” (ambos dos EUA), e o “Enseignement Moral et Civique” francês.

O problema maior era a mesmice, a chatice e o reacionarismo da disciplina, sentimentos divididos até pelos professores, que tentavam tornar as aulas mais palatáveis, mas com muito pouco sucesso. Ao voltar dos EUA, fui revalidar meu diploma em uma universidade pública brasileira. Apesar do nível de excelência da escola americana, disseram-me que faltava um semestre de Problemas Brasileiros.

Sorte minha: o professor encarregado de ministrar a disciplina era um grande músico, me reconheceu do passado e pediu que eu o encontrasse depois da aula. Assim feito, ele me disse, em voz baixa, que achava um absurdo eu fazer aquela matéria. Ele fora designado para a aula pela chefia, mas a detestava, fazia contra a vontade. Pediu-me um trabalho sobre o tema para o final do semestre e ficaria tudo bem. Posso escrever sobre esta disciplina, brinquei: é mais um problema brasileiro! Tapinha nas costas, fui para casa e retornei apenas para entregar um trabalho que, se não me engano, versava sobre a cruel exploração dos povos negros no país. Um problema brasileiro!

Ideias de se reinstaurar algo como Moral e Cívica – camuflada ou não – no ensino escolar só não é repudiada (ainda) pelos alunos porque eles não a conhecem. Ela estaria inserida em todas as disciplinas, e haveria um viés ideológico e até religioso – a depender da forma. Enfim, seria uma troca de escola sem partido a uma escola “da nossa ideologia”.

Mas pretendem ir além com esse educar sem partidos, o que é uma quimera. E sem ideologia, o que é pior ainda. A ideologia está presente até no contexto de um projeto de tubos e ensaios e tantos outros assuntos. Por acaso existe história sem ideologia? Nunca, ainda mais porque a história é escrita sempre pelos poderosos ou seus bedéis, sejam fatos e dados reais ou coloridos ao bel-prazer de quem a conta. No passado tivemos o positivismo de Comte e Mill, despejado em todas as áreas. Lembro-me disso na faculdade, no Rio, na época da repressão Médici (1971/72)! A detestada professora veio com a “ruptura epistemológica” de Bachelar, mas que nada mais era do que o afastar do conhecimento adquirido, do já sabido. Enquanto isso, no Brasil aplicavam-na com o intuito de tolher ideologias, e não da forma que os franceses empregavam como método.

Falar de Revolução Francesa sem falar em ideologia é, sim, um ato ideológico, envernizando a história. Da Proclamação da República, encharcada de positivismo, nem fale. E mesmo do descobrimento do Brasil, igualmente. Só para falar de história ou geografia, não há um momento sequer em que ideologias não estejam presentes, seja pelo lado de quem escreveu, o vencedor, ou de quem interpreta. Contar a Proclamação da República sem mencioná-la como golpe um de estado de Deodoro? E Floriano Peixoto, traíra que “substituiu” o marechal por golpe, um rígido ditador? E a longa escuridão de 1964? Nada disso está na “história oficial” como realmente aconteceu. Se está.

Partidarismos e eventuais excessos são assuntos para ficarem a cargo do diretor de escola, como convém à hierarquia, além de assuntos pornográficos, racistas ou de agressões físicas. Disse George Orwell, em meados do século 20, que a história é contada e escrita pelos vencedores. Claro, derrotados não têm voz. Em seu histórico livro “1984”, Orwell preconizava: “O que pode ocorrer em uma sociedade completamente vigiada? E se essa vigilância se transforma em mecanismo para controlar as pessoas?” Viro a página e pergunto eu: que tal as ciências humanas sem o perpasse ideológico? Mais frias do que voz de androide em anúncios 3D computadorizados! E para achar propaganda partidária em conteúdo ideológico basta um olhar de soslaio do inquisidor. Resta-lhes impor uma ideologia “limpa e casta”, a própria.

Mais agressivo seria o policialesco ato de o estudante filmar o professor, como se fosse um bandido procurado. Com tantas rusgas entre alunos e mestres, nas quais os últimos são invariavelmente os mais atingidos com agressões de toda ordem, dá para imaginar jovens vingativos montando vídeos para atingir mestres de que não gostam. Dedurar gravando um mestre é uma ideia perversa, uma verdadeira bomba social. Reflitamos sobre o passado, ele é a história que nos dará o rumo a ser seguido.