Cegueira, ouvido musical e outros sentidos

Reli o “Ensaio Sobre a Cegueira”, do português de Azinhaga José Saramago, ficção sobre uma epidemia que deixava sem visão os habitantes de uma cidade, em convulsão social – ora, pois pois, estás a saber que é a ótica do realismo socialista d’antanho, como convinha a um gajo comunista! Passei à reflexão paralela sobre os cegos e a música. Lembro-me de muitas histórias, desde quando resolvi abrir as inscrições para deficientes visuais na Escola de Música do Municipal de São Paulo (EMM): ficavam bem acima dos demais, raramente falhavam em uma questão auditiva. Sem um dos sentidos, ampliam-se outros, como a audição.

O pianista Paulo Cego, meu colega de grupo na “Gota d’Água” (1975), do Chico Buarque e Paulo Pontes, tinha cegueira de nascença. Sendo rara ou impossível a leitura musical em braile, Paulo aprendia Bach de ouvido. Bastava alguém tocar a linha de cima de uma “Invenção”, por exemplo, e ele a gravava na cabeça. Depois, ouvia a linha de baixo, memorizava, e “voilà”, mão esquerda pronta! Ato contínuo, juntava as duas mãos e passava a tocar ambas as vozes! Aprendia, linha por linha, até memorizar a peça inteira, coisa inalcançável para nós. Logo, aprendeu o repertório da peça, hora “atacar” no espetáculo.

Chegando ao teatro, alguém o guiava pelos labirintos internos, segurando-lhe o braço com a mão, tal fosse um guia. No final do 1° ato, havia um longo monólogo da Joana (Bibi Ferreira, uma Medéia moderna), coisa de 15 minutos (e se não era tudo isso, era o que sentíamos). Cena dramática, Joana-Medéia desabafava como só a Bibi sabia fazer, até matar-se e aos dois filhos. Durante os ensaios, saíamos antes do monólogo, pé ante pé, para emendarmos pausa e intervalo. Paulo punha a mão em meu ombro, e eu o guiava pela escada de madeira do nosso palco musical. Galgávamos bastidores, camarins, e, finalmente, a porta dos fundos. Mas no pré-ensaio geral, os testes de iluminação! Descobrimos que Bibi ficaria sob um spot de luz – o chamado “canhão” – focado apenas nela. O resto era um breu só.

Pensamos: que diabo iríamos fazer naquela infinitude de tempo até o intervalo, sem podermos sair? Paulo, tateando e tendo memorizado o caminho, ouvindo a reflexão e absorção das paredes, portas e passagens, pediu que eu colocasse minha mão em seu ombro, trocando comigo o papel de guia. Logo estávamos livres para um saboroso café, retornando apenas ao soar da campainha de chamada para o segundo ato.

Em seu apartamento, no Rio, Paulo dizia em voz alta o nome de quem chegava, bastando-lhe ouvir os passos, mesmo que não fossem de alguém tão frequente por lá como eu. Sabia o som dos sapatos, dos passos, e o padrão rítmico de cada um ao andar, explicou. Na hora de eu ir embora, Paulo, bom cavalheiro, me conduzia ao elevador, e ao perceber que eu esperava diante da porta errada ele simplesmente dizia é este aqui, mostrando-me qual deles chegaria primeiro. Tinha uma sensibilidade a toda prova, carregava sempre um par de chaves que girava, uma ao lado da outra, entre os indicadores e polegares das mãos. Mas não explicava para que serviam, se eram alguma “antena” ou coisa afim. Conseguia, sabe-se lá como, dizer se alguma moça com quem conversáramos era bonita, e pelo aperto de mão e o tom de voz, o caráter de alguém que lhe apresentávamos.

Outro afeito a coisas da sensibilidade (e do além) era um trombonista de Campinas apelidado Pantera – um negão, como gostava de ser chamado, de uns 140 quilos pelo menos. Tocava na sinfônica local, e chegava arrastando os chinelos, atrasando quando lhe convinha, e faltava dias sem explicação, não estava nem aí. Camisa social desabotoada em cima, ostentava as guias de umbanda com orgulho. Pois um certo dia as esposas de dois músicos da orquestra, suspeitando que seus maridos as traíam, foram consultar, por sugestão de outra amiga, um pai de santo na vila Costa e Silva, bairro mais pobre entre o centro e a Unicamp – para confirmar ou estancar a dolorosa suspeita de traição. Chegando lá no endereço fornecido, as inconformadas “helenas” encontraram um homem enorme, as duas mãos cobrindo-lhe o rosto voltado para baixo. Rapidamente, uma das desconfiadas esposas puxou a outra pelo braço e, antes que o pai de santo “acordasse”, saíram fora, sussurrando é o Pantera, é o Pantera!

Conhecidos também eram os talentos de um violinista da Orquestra Sinfônica do Estado, hoje chamada apenas Osesp. Era um discreto chinês que adivinhava o sexo dos futuros rebentos das gestantes, usando para isso um lápis amarrado em uma linha. Conforme o sentido de giração daquele pêndulo de grafite sobre o pulso da grávida, dizia menino ou menina, e não errava nunca. Perto dele se sentava um colega chamado Coppola, folclore em pessoa, que adivinhava tudo. Terminado o ensaio no histórico Teatro Cultura Artística, na rua Nestor Pestana – que além de via era a fronteira entre a cultura, bons restaurantes, lojas e, do outro lado, o bas-fond local -, lá o aguardava sempre uma moça de fino trato e “família quase boa” com suas botas brancas.

Perguntado qual o segredo de se manter tão saudável aos para lá de 70 e tantos anos, Coppola dizia é que escolho muito bem minhas mulheres! (Os maldosos diziam que ele fechava as torneiras do banheiro com os cotovelos, para não pegar micróbios). Olhos vivos, ouvidos aguçados, adivinhava tudo, um dom aliás pouco conhecido. E para o bem de todos nós, orquestra e Eleazar. Era um homem de paz e bom coração.