Cala a boca, brasileiro!

Desde sempre, o Brasil carrega muitos problemas, sem dúvida. Um deles, contudo, não é o marasmo, tampouco a previsibilidade. As surpresas, por sua vez, podem ser animadoras, positivas, ou extremamente preocupantes, senão trágicas.

No momento, um destes assombros impõe alarme sobre a já frágil estabilidade democrática do país, por ataque absolutamente arbitrário e injustificado à liberdade de informação e expressão.

A censura (prévia, inclusive) justifica apreensão que não se sentia desde a redemocratização e sinaliza para nova tragédia anunciada.

Menos dramático, pelo menos, é o aspecto curioso de que muitos receavam algum tipo de ação antidemocrática por parte do presidente Jair Bolsonaro, dado à sua retórica parlamentar de defesa da ditadura militar e ao histórico de caserna.
Mas, eis que, frente ao atual atentado contra a imprensa, o presidente surpreende (para bem!) e manifesta-se a favor da democracia e da liberdade de informação, essencial à existência e razão de ser do jornalismo.

Sucede que, de maneira inacreditável, aquele que deveria ser, justamente, o maior defensor dos fundamentos básicos da Constituição – entre os quais, a negativa total da censura – e a quem se esperava que poderia ter de frear os ímpetos do novo governo, o Supremo Tribunal Federal, ao contrário, acaba sendo o pivô do maior ataque à democracia vivenciado nas últimas décadas. De fato, este país é imprevisível, tal sua democracia…

Como todos sabem – ou pelo menos deveriam -, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou que os sites da revista Crusoé e O Antagonista retirassem do ar reportagem e notas publicadas na semana passada sobre uma menção ao presidente da corte, Dias Toffoli, feita em um e-mail pelo empresário e delator Marcelo Odebrecht.

A decisão de Moraes, que atendeu a um pedido de Toffoli, é de sexta-feira da semana passada, 12, no âmbito de um inquérito aberto pelo STF em março para apurar supostas fake news e divulgação de mensagens que atentem contra a honra dos integrantes do tribunal. O site foi notificado na manhã de segunda-feira, 15.

A multa por descumprimento é de R$ 100 mil por dia. Moraes também determinou que os responsáveis pelos sites prestassem depoimento em até 72 horas.

A reportagem de Crusoé que motivou a ação do Supremo mostrava que Marcelo Odebrecht enviara à Polícia Federal, no âmbito de uma apuração da Lava Jato no Paraná, esclarecimentos sobre menções a tratativas lícitas e ilícitas encontradas em seus e-mails.

Uma das menções, de acordo com o delator, era a Toffoli. Na época do e-mail, julho de 2007, Toffoli não era ministro do STF, mas ministro da AGU (Advocacia-Geral da União), no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O e-mail foi enviado por Marcelo Odebrecht a dois executivos da empreiteira, Adriano Maia e Irineu Meirelles, e dizia: “Afinal vocês fecharam com o amigo do amigo de meu pai?”. Não há no e-mail nenhuma citação a pagamentos.

Odebrecht explicou à PF que a mensagem se referia a tratativas que o então diretor jurídico da empreiteira, Adriano Maia, tinha com a AGU sobre temas envolvendo as hidrelétricas do rio Madeira, em Rondônia

Ao longo da semana, diversos veículos, entre os quais o jornal Folha de S. Paulo e a Rede Globo, confirmaram que o documento de Marcelo Odebrecht havia sido anexado aos autos da Lava Jato — e depois retirado — e que seu conteúdo é exatamente o que a revista divulgou.

Detalhe fundamental é que a justificativa para a censura prévia, pelo ministro Moraes, foi a de que esse documento não integrava as apurações da Lava Jato, consequentemente, sendo supostas “fake news” as reportagens dos veículos de comunicação censurados.

Como se não bastasse a confusão entre o que se transmite anonimamente pela internet com o que se publica formalmente em jornais, revistas e outros meios assinados por jornalistas responsáveis, fica a alarmante sensação de retorno a um passado tenebroso junto a algo ainda muito do presente: a opressão por quem, supostamente, “pode mais”.

Naturalmente, as reações foram várias. O Estadão, em editorial, condenou a censura: “Uma coisa é a instauração de um inquérito criminal para investigar ameaças veiculadas na internet envolvendo ministros do STF. Outra coisa bem diferente é um ministro do STF determinar, no âmbito desse inquérito, o que pode e o que não pode ser publicado por um veículo de comunicação a respeito do presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli. Isto é censura e, no Brasil, a Constituição de 1988 veda explicitamente a censura.

Não há outras palavras para descrever a decisão do ministro Alexandre de Moraes. Ao determinar que o site O Antagonista e a revista Crusoé retirem, imediatamente, dos respectivos ambientes virtuais a matéria intitulada ‘O amigo do amigo de meu pai’ e todas as postagens subsequentes que tratem sobre o assunto, sob pena de multa diária de R$ 100.000’, o relator do inquérito ordenou a censura de dois veículos de comunicação. O assunto tem especial gravidade tendo em vista que a missão do STF é precisamente proteger a Carta Magna.”

O Globo também se manifestou: “Na década de 1970, agentes da PF visitavam as redações para impedir que certas notícias fossem divulgadas. Na manhã de segunda, um oficial de Justiça bateu à porta da revista digital Crusoé e do site O Antagonista, com a proibição do Supremo de que uma notícia sobre o presidente da corte, Dias Toffoli, continuasse na internet.

Logo o STF, que reiteradas vezes tem garantido o direito constitucional à liberdade de imprensa. Uma coisa é processar responsáveis pela edição de supostas calúnias, injúrias e difamações. Outra, é impedir a veiculação de matérias, como fazia a PF na ditadura militar.

Tudo é grave, porque a comprovação da notícia de que o empreiteiro Marcelo Odebrecht citou o ministro em depoimento à Lava Jato foi retirada dos autos, como confirmado pela TV Globo.”

“Retirada” dos autos? Por quê? Por qual motivo? Isto é que deveria ocupar a atenção do maior tribunal de justiça do país.

E mais: a nova investida inquisitorial contra a democracia rendeu atrito entre o próprio Judiciário, opondo o ministro do STF à procuradora-geral da República, Raquel Dodge.

Alexandre de Moraes ignorou o pedido, feito horas antes pela procuradora-geral, Raquel Dodge, de arquivamento do inquérito sigiloso aberto em março pelo presidente do Supremo, Dias Toffoli, para apurar fake news contra integrantes da corte.

Na época, o ministro – que nomeou Moraes para ser relator – foi acusado de abuso de poder e caça às bruxas contra quem criticasse os ministros da corte.

Dodge havia comunicado a Moraes, no início da tarde de terça-feira, 16, o arquivamento do inquérito por interpretar que a Constituição determina que o Ministério Público é titular exclusivo de ações penais.

“O ordenamento jurídico vigente não prevê a hipótese de o mesmo juiz que entende que um fato é criminoso determinar a instauração de uma investigação e designar o responsável por essa investigação”, escreveu Dodge na manifestação a Moraes.

Ela ainda afirmou que, “além de não observar as regras constitucionais de delimitação de poderes”, a abertura do inquérito pelo Supremo “transformou a investigação em um ato com concentração de funções penais no juiz, que põe em risco o próprio sistema penal acusatório e a garantia do investigado quanto à isenção do órgão acusador”.

O ministro, não obstante, não aceitou os argumentos da procuradora. Enfim, quando aquele que existe para garantir a segurança e a estabilidade da democracia é o que mais a perturba, sobra recorrer a quem? À imprensa? Se pensa assim, caro leitor, corra a se manifestar enquanto é possível.

Amanhã, a se depender da aparente vontade de alguns poderosos, a mordaça poderá já estar não apenas sufocando a imprensa e a democracia, mas também tampando a sua boca.