Autran Dourado, escritor. pai, amigo e herói – parte I

(Trinta de setembro. Cinco anos que partiu!) O velho Autran não era muito de conversar sério, mas com seu jeito zombeteiro conseguia entremear conselhos sábios, tiradas filosóficas e usar a aguda visão política de um rapazola que fora inscrito no Partidão, de onde saiu por perceber que a “patrulha” queria interferir em sua literatura. Viveu com os pés no barro de quem foi muito Brasil, desde as Minas Gerais de sua Monte Santo, que inspirou a mítica cidadezinha de Duas Pontes, recorrente em seus livros. Aos 19 já publicara um livro, porém a mim ensinou a não tentar ser precoce na vida, repetindo a lição que lhe havia sido dada pelo escritor Godofredo Rangel, que seguiu à risca desde o início. Não seja precoce, seja perseverante, obstinado, dizia – uma formiguinha, analisou crítico há alguns anos, conforme veremos adiante.

As conversas com os amigos, especialmente os que frequentavam nosso apartamento em um predinho de três andares sem elevador, se eram entre risadas com o Otto Lara Resende ou o Hélio Pellegrino, pareciam ser mais sérias nas domingueiras com Clarice Lispector, quando o assunto passeava por Schopenhauer, Goethe e Kafka. Mais tarde eu iria me iniciar nas leituras dos grandes pensadores da esquerda “real”, levado, como o pai no passado, pelo canto da Lorelei que, à beira do rio Reno alemão, com seu corpo deslumbrante e voz virtuosa atraía barqueiros pela sua formosura. Inebriados pelo uivo, digo, canto do vento em uma reentrância das margens do rio, os barqueiros eram lançados para dentro de um grande vão nos rochedos, e suas embarcações espatifavam-se contra as pedras, fazendo-os vítimas de suas próprias ilusões. A minha Lorelei, no caso, era o fim das torturas, a liberdade intelectual e artística e a justiça social.

Pois minha atração pela vigiada esquerda estudantil daqueles tempos não via a risca tênue a separá-la do ingresso em uma revolução visionária. Era tudo a que se resumia na época a vida dos jovens sonhadores, tal qual acontecera com meu pai. Um dia, em Petrópolis, ele me convidou para um chopinho no tradicional D’Angelo. Lá, falou sério sobre sua vivência, primeiro taquigrafando falas do Luís Carlos Prestes na Assembleia de Minas. Mostrou também a sabedoria acumulada nos tempos de JK, de quem foi secretário de imprensa. Contou sobre sua longa “sala” para – sim, ele mesmo, meu então ídolo – Che Guevara.

Não foi carrancudo em um pedestal, nem foi com intenção de me desmontar, do alto de sua experiência, apenas usou a tática correta, quem sabe remanescente de seus estudos dialéticos. “Democracia y Libertad”, palavras que ouviu incontáveis vezes de um verborrágico Guevara durante horas a fio, prática dos sermões em forma de discursos do comandante Fidel. Em um movimento, “roque de xadrez”, o pai se aproximava do filho ombro a ombro, mostrando como aquele canto da sereia atraía os jovens para o enfrentamento da ditadura. Lembro-me especialmente de ter ouvido a expressão “bucha de canhão”: enquanto a juventude era presa, torturada e às vezes morta, os “velhos” – alguns bastante conhecidos – ficavam encastelados no controle como em um videogame, preservando-se com a desculpa de serem a “inteligência” da luta armada, que haveria de prosseguir e vencer. Começou a cair ali, na chopada, meu sonho irrealizável.

Fora essas raras lições, falava dos livros, da necessidade de ler, uma enfermidade sadia que contaminou seus quatro filhos. Ontem mesmo, na rua, pensando em “Dom Casmurro”, do Machado, lembrei-me de mais uma frase lapidar que meu pai proferiu. Eram tempos pós-tragédia da Paulo de Frontin, no Rio (“Caía a tarde feito um viaduto”, pensei nos versos do Aldir Blanc), e afirmou que se todo mundo lesse Machado de Assis menos viadutos cairiam, menos pessoas morreriam na mesa de cirurgia. Hoje arrisco, com o beneplácito dele de lá de seu merecido descanso, que menos corrupção haveria!

Machado de Assis, nosso escritor maior, como o chamava, era seu porto seguro. Entre outros, alternava o carioca com Flaubert, Joyce e Faulkner. E passava horas lendo, e em algum momento e lugar inesperados a “ideia súbita” (não acreditava em inspiração) lhe surgia. Primeiro, ia anotando tudo em taquigrafia – a espanhola, mais rápida, dizia, com uma ponta de orgulho -, aprendida nos tempos da Assembleia de Minas.

Era taquigrafando que anotava detalhes em cartõezinhos que levava nos bolsos, peças do quebra-cabeça com que arquitetaria um futuro livro. Uma vez traçados os contornos principais da nova obra, punha-se a escrever desesperadamente, como se estivesse ficando – ou evitando ficar, sei lá – louco. E tudo isso com uma rotina metódica, um trabalho de carpintaria, dizia ele. Sua confidente era minha mãe, Lucia, que lia seus originais, e ele não mais costumava comentar sobre o que estava fazendo. Apenas uma vez perguntou-me se havia uma sonata em Fá de fulano (não me lembro a quem ele se referiu), e eu disse que sim. Achou bonitas as palavras, pois embora gostasse de música não era nada chegado à teoria, títulos e afins. Apenas ouvia. E usou a tal sonata em um texto, soava bem, pareceu-lhe.

Depois que terminava de escrever uma obra, a ressaca. Um dia ouvi uma frase do Jorge Luis Borges, o livro só acaba quando está impresso. Pura verdade que eu só vim a confirmar mais tarde, em minhas teses e livros técnicos, que só dei por terminados depois de vê-los impressos, seguros nas mãos. Coisa de formiguinha, pai. (Continua na próxima semana).