Autor e estilo, o punguista e o léxico da pandemia

Henrique Autran Dourado

Pensar a própria escrita é fundamental para redigir melhor. Nos assuntos acadêmicos usei normas e cânones da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), que padroniza as técnicas de produção – princípios básicos, rodapés, citações, bibliografia. Em um jornal ou revista cedo a outras regras, a depender da linha do veículo e do público que o lê.

Em meu blog a coisa muda de figura. Liberdade de redação, imagens, diagramação, a busca por um estilo (Millôr se gabava: “enfim, um escritor sem estilo”). Tudo fora das limitações dos “toques”, o quanto de espaço que me é reservado. Já na crônica há fatos com algum sabor literário, mas longe da “grande forma”, um romance, como na música uma sinfonia.

Se há algum estilo, ele foi consolidado desde a escola e as leituras da adolescência. Essencial foi a presença de meu pai, o escritor Autran Dourado, que após mais de 30 livros e uma dúzia de traduções deixou uma obra inconfundível. Lições paternas… Uma frase, um comentário que fosse me bastavam. Lembro-me de ouvi-lo falar em seduzir o leitor para “bater-lhe a carteira”: distraí-lo para chegar ao que realmente interessa.

Livros dele, como “Poética de Romance – Matéria de Carpintaria”, trazem orientações sobre o escrever e a boa língua portuguesa. Por revelar truques e artifícios, um colega escritor fez uma piada, disse que ele estaria “entregando tudo” do ofício. Eu penso que essa técnica do pungueio já começa pelo título do texto (pungueio é o que faz o punguista, batedor de carteiras, acabo de descobrir no Houaiss procurando sobre o ato do meliante. Aliás, se o leitor dignar-se a uma procura no dicionário será um gesto muito saudável).

Ao enviar um texto para o editor, costumo avisar que o título definitivo está no corpo do artigo, e não no nome do arquivo, já que mudar é uma rotina que só é encerrada após clicar em “enviar”. O que me   lembra o argentino Jorge Luís Borges (1989-1996), segundo quem a obra só termina quando está impressa.

Véspera da entrega de minha tese de doutorado. Dez pesados volumes no chão, eu a folhear o meu, até que se desencadeou um processo enlouquecedor: ah, isto não! Apagava com o velho “branquinho” e corrigia com caneta. Cheguei a colar uma tirinha de papel impresso sobre algumas palavras em cada um dos volumes. Fechei tudo e fui dormir, pois sempre haveria o que mudar, e com o texto entregue eu me libertaria, lembrei Camões: “Inês é morta”.

Meu pai era um artesão, um ourives dos minúsculos rabiscos taquigráficos, criptografados nos cartõezinhos que levava no bolso. Depois, passava a elaborar o texto tecla por tecla, palavra por palavra em sua Remington. Datilografava, corrigia no papel, batia tudo novamente, relia, corrigia. Alguém lhe disse o senhor escreve complicado, tive de ler três vezes, ele respondeu mas eu escrevi 20! (Tento aí um pouco do diálogo no estilo paterno, sem aspas ou travessões).

Com um pouco de experiência, percebi que o melhor é esboçar um “boneco” do artigo – algo como o “copião”, a matriz bruta de um filme -, para alterá-lo e editá-lo. Fechado meu “textão”, releio umas duas vezes no dia seguinte, depurando-o, as datas e fontes conferidas, e no dia subsequente e depois no outro, até dá-lo  por concluído.

Tenho quatro tipos básicos de títulos: o que diz pouco e deixa o texto trabalhar sozinho; um segundo, que como uma reportagem abre logo o jogo (serve também para aquele preguiçoso “leitor de títulos”); um outro “bate a carteira”, como dizia meu pai, atrai o cidadão para mais adiante levá-lo aonde interessa. Variante minha é “Corona, fermata, grande pausa e cadenza”. Por mais estranhos que esses termos sejam ao leigo em música, o “corona” apela ao subconsciente do leitor, onde fica hospedado o medo do vírus da pandemia. É isso que ele, até sem saber, vai procurar – e lá pelas tantas encontrar. Por fim, há um quarto tipo, quase um mapa do caminho do texto, que é o caso do presente artigo, um roteiro a ser cumprido.

(Sobre idioma e pandemia, lembrei-me do léxico particular da doença. Repórteres de TV generalizam com “a” Covid, quando o substantivo é de dois gêneros (Houaiss): a Covid é a doença, o Covid é o vírus. Na maior parte das emissoras falam récorde de contaminações, como no inglês “record”. Em português, o correto é recorde mesmo; por razões óbvias, algumas emissoras não querem menção a certa concorrente, daí a pronúncia exótica. Já em um contexto legal dizem que fulano foi citado no caso dos respiradores, quando na verdade foi apenas mencionado, como se o sujeito tivesse sido intimado ou preso por alguma autoridade. Por isso, tenho evitado citar uma pessoa, menciono-a apenas. Mas cito, claro, letras de músicas, frases, livros. Outro vício: não cabe “mandato judicial” algum para busca ou prisão: possui mandato quem é investido de cargo eletivo ou por designação com prazo certo. Mandado é quando a autoridade manda cumprir uma ordem).

A ideia deste artigo, da escrita aos vícios covidianos, surgiu com o livro que acaba de me chegar às mãos. Em “Memórias de Isolamento”, de minha autoria, observo o que tenho aprendido nessas décadas. O título demorou a surgir: não quis combinar a preposição “de” com artigos definidos ou indefinidos, como em “Memórias do Cárcere”, do Graciliano, ou “Memórias de um Sargento de Milícias”, do Manuel de Almeida. Gosto da simples preposição em “Mémoires de Guerre”, do De Gaule. Sentido tão amplo que serve até para a guerra pandêmica que estamos vivendo.