Arrebol com cebola





O professor Wilson Bertrami conhece muitas passagens acontecidas em Tatuí e com tatuianos. Do alto de seus 87 anos, mantém jovem sua alma e seus pensamentos. Comanda, há alguns anos, dois programas na Rádio Notícias de Tatuí. Em um deles, o “Almoço Musical”, apresenta a boa música brasileira do passado: samba, chorinho e MPB. Em outro, “Estação Saudade”, relembra músicas que marcaram uma época, dando destaque à seresta.

Seus programas são recheados de cultura, de histórias e casos ocorridos na cidade, assim como muitas entrevistas que realiza com humor e perspicácia. Senador vitalício do Senadinho de Tatuí, conversamos algum tempo nesta semana, sentados no Café Canção, quando contou alguns casos dos quais se lembrou, dos quais escrevo este:

O Conservatório de Tatuí sempre trouxe músicos famosos para se apresentar na cidade. Certa ocasião, nos anos 60, foi convidado para reger a orquestra do Conservatório o maestro César Guerra-Peixe, músico, professor e arranjador famoso internacionalmente, que compôs trilhas para alguns filmes nacionais e fez arranjos sinfônicos para músicas de Chico Buarque, Luiz Gonzaga e Tom Jobim.

Pois bem, esse famoso músico veio se apresentar em Tatuí, fato muito comemorado na época. Depois de acertar todos os detalhes, ficou combinado que iriam buscá-lo em um hotel de Sorocaba, onde estava hospedado.

O Conservatório não tinha a estrutura atual e muita coisa era realizada na base do improviso. No dia da apresentação, pediram ao senhor Hélio Costa que o buscasse, junto com seus acompanhantes, com sua Kombi.

Hélio Costa, homem formidável, sempre muito solícito, prontificou-se a buscar o famoso maestro. Como o concerto seria às 20 horas, foi à tarde, pouco antes de fechar o expediente, na usina de leite que comandava. Tempo de sobra.

Em Sorocaba, encontrou-se com o maestro e logo estavam na estrada. No caminho, conversando, Guerra-Peixe, muito formalmente, disse que gostaria de comer algo antes do concerto. Hélio, lembrando-se que iam passar em frente à “Venda do Pedro”, no bairro da Quadrinha, contou a respeito de uma famosa sopa de cebola que faziam nesse estabelecimento. O maestro topou dar uma paradinha para saborear a tal sopa.

Lá chegando, naquele ambiente bucólico de vendinha de sítio, o maestro, acostumado com locais mais sofisticados do Brasil, dos Estados Unidos e da Europa, acomodou-se em uma das mesas rústicas do local, sentindo-se à vontade. Pedro, dono do estabelecimento, ofereceu uma pinga produzida em um alambique das imediações. Guerra-Peixe aceitou. Conversa vai e pinga vem. De repente, o maestro levantou-se e foi observar o pôr do sol. O arrebol estava magnífico. O céu, pincelado de cores avermelhadas e alaranjadas, com nuvens brancas e um azul claro ao fundo, indescritível.

Dizem que os jovens só olham para o nascer do sol, mas os idosos olham para o poente. O maestro Guerra-Peixe, nessa ocasião, já contava com seus 60 e poucos anos. Com sua alma artística embriagada pela visão do arrebol e, claro, pela aguardente, o músico pareceu esquecer-se do mundo. Quando a sopa ficou pronta, colocou sua mesa perto da porta da venda, de maneira que continuasse a ver o arrebol. Sopa de cebola, cachaça e arrebol! Alimentando o estômago, o cérebro e a alma.

Todos, sem exceção, tomaram goles da “purinha”. Enquanto isso, as conversas foram ficando cada vez mais descontraídas. O formalismo inicial foi dando lugar ao “familiarismo”. Parecia que todos se conheciam havia anos. E a hora foi passando. No céu, só restavam uns riscos avermelhados. O dia cedeu lugar à noite, mas Guerra-Peixe não fazia menção de sair.

Hélio, como estava dirigindo, foi quem menos abusou da caninha. Estava sóbrio, mas um tanto alegre. Ciente de que estavam atrasados, tentava fazer com que o maestro resolvesse continuar a viagem. Mas parecia que, para aquele homem, inebriado pelo ambiente, tudo que importava em sua vida estava ali, na venda do Pedro.

Ah, com a confiança que a intimidade do momento permitiu, Hélio começou a insistir para retomar a viagem, mas sem sucesso. Depois de algumas tentativas mais educadas, a coisa virou:

– Ô, Guerra-Peixe lazarento! Vamos embora, morfético! – Hélio insistiu tanto, inclusive chamando de outras expressões mais feias, até que o homem se tocou, sem se ofender, e retomaram a viagem.

Enquanto isso, na cidade, todos estavam preocupados. O concerto já estava atrasado. Chegaram mais de 30 minutos depois do horário marcado para seu início.

Mas tudo correu maravilhosamente. Guerra-Peixe, inspirado, com a alma invadida pela beleza do arrebol, pela cebola e, claro, pelo efeito da cachaça, regeu como nunca, arrancando satisfeitos aplausos da maravilhada plateia.