Multidão dá adeus a maestro progressista





Kaio Monteiro

Corpo de maestro é levado em cortejo do Velório Municipal, ao cemitério Cristo Rei na manhã de quarta

 

Multidão acompanhou o enterro do maestro Antonio Carlos Neves Campos, falecido às 11h de terça-feira, 22. O músico teve sepultamento às 10h de quarta-feira, 23, em cerimônia que atraiu autoridades, artistas, familiares e amigos.

Um dos mais conhecidos músicos do município – senão o mais conhecido –, Neves Campos foi sepultado no cemitério Cristo Rei.

O maestro faleceu em Piracicaba, depois de permanecer por 21 dias internado na UTI (unidade de terapia intensiva) do HFPC (Hospital dos Fornecedores de Cana de Piracicaba).

Ele havia sido transferido de Tatuí depois de ter dado entrada no Pronto-Socorro Municipal “Erasmo Peixoto”. Fazia tratamento de hemodiálise e teve o quadro de saúde agravado por conta de problema cardiorrespiratório.

“Ele foi um lutador. Até com a vida lutou. Ele ficou sem aparelhos, ainda quando entrou em coma por uma semana”, relatou a amiga e professora de piano Zoraide Mazzulli Nunes.

Neves Campos foi removido para Piracicaba no início do mês, em coma induzido. No hospital piracicabano, passou por cirurgia para implantação de marca-passo. Na segunda semana do mês, apresentou quadro de melhora.

Por conta disso, os médicos retiraram a sedação que o mantinha inconsciente. Na semana passada, o quadro de saúde dele voltou a piorar, quando teve nova parada cardiorrespiratória. O músico voltou ao coma e não resistiu.

A história do maestro com a música é antiga. Com sete anos de idade – e pela insistência dos pais –, começou a frequentar as aulas de piano no Conservatório de Tatuí. Na época, a escola ainda funcionava no porão do “Casarão dos Guedes”.

Em 1964, formou-se em piano clássico pelo Conservatório. Dois anos depois, em 1966, venceu o Concurso Regional de Piano em Massena, nos Estados Unidos, concluindo a formação básica na Potsdam Central School, em Nova Iorque. Estudou, ainda, com Arthur Frackenpohl e Raymond Schinner.

Da cadeira de estudante de piano à mesa da diretoria, o maestro passou por situações de diferentes ritmos e arranjos. Formou-se em odontologia, também por insistência dos pais. Eles preferiam que o músico tivesse uma profissão “segura” às incertezas da arte.

O dentista, porém, nunca abandonou a música. Professor do Conservatório, fundou, em 1974, a Big Band Sam Jazz, o primeiro movimento de música popular na escola que, até então, era essencialmente de música erudita.

A carreira na odontologia durou 25 anos. A da música encerrou-se neste ano. Ainda dentista, Neves Campos assumiu, em 1984, a administração do Conservatório. Na época, abriu as portas da escola para a música popular e manteve a afinação do órgão público, depois de abandonar o consultório.

A carreira de músico e arranjador também ganhou impulsão. Dentro e fora da escola, Neves Campos consagrou-se como compositor capaz de arrancar elogios, inclusive, nas artes cênicas.

Sob sua administração, a escola consolidou o título de “mais importante da América Latina”. “É algo que, às vezes, amedronta. Não queremos ser somente a maior, temos que ser a melhor. Esta preocupação é permanente. Como diretor, tento fazer com que tudo funcione em harmonia”, declarou, em 2004.

Walmir Devanei Ramos, professor de luteria teórica, prática e física aplicada aos instrumentos de cordas e desenho técnico de luteria do Conservatório, disse que Neves Campos representou um marco na história da música.

“Eu o conheci em 1976, em Tatuí, quando vim de Votorantim para estudar violino no Conservatório”, contou. Na época, o músico atuava como luthier, após ter feito curso em Sorocaba, com um italiano. Entretanto, queria aprender violino.

Ramos deixou a escola de música três anos depois, em 1979. Mais tarde, ele e a família voltaram a ter contato com o maestro. “Todos os meus filhos fizeram o Conservatório”, falou. Atualmente, são professores da escola de música.

“Sempre tive um bom relacionamento com ele. Não tive contato como funcionário, mas como aluno, posso dizer que ele era um grande amigo, uma pessoa muito querida, um verdadeiro paizão do pessoal”, relatou o luthier.

Outra característica do maestro era o carisma. Neves Campos é apontado pelos amigos, colegas de trabalho e pela classe artística como uma pessoa “acessível”.

“Não havia muito hierarquia com ele. Inclusive, todos os meus filhos que trabalhavam com ele tinham uma relação de pai e filho”, afirmou Ramos.

Descrita como pessoa ímpar pelos amigos e companheiros de música, Neves Campos é citado, ainda, como democrático. Durante sua gestão à frente do Conservatório, abriu as portas para a música popular brasileira.

“Acho que, aqui em Tatuí, ele é um ícone. Ele colaborou com a música no país porque tocou com os melhores músicos, fez arranjos, compôs muitas músicas”, disse Ramos.

O principal feito apontado por ele é a criação da área de MPB no Conservatório. Em todos os anos, o luthier disse que esta foi a área que mais cresceu na escola de música.

“Por tudo isso, o maestro Neves é considerado uma figura extremamente representativa, não só na área popular, mas na erudita”, afirmou o professor.

Neves Campos regeu, por muitos anos, a Orquestra Sinfônica do Conservatório de Tatuí. Também atuou à frente de orquestras das cidades de Campinas e São Paulo. “Ele acabou sendo, obviamente, um músico de valor, como outros que agem em várias áreas. Foi bem eclético”, completou.

Neves Campos formou e regeu a Orquestra Maestro Tom Jovem, que se transformou na Sinfônica do Conservatório. Por ocasião do trabalho, fez turnês por várias partes do Brasil.

Reverenciado pelos músicos, o maestro deve ter – conforme o luthier – o nome perpetuado na história da música. “Assim como Bimbo Azevedo, que compôs várias valsas até hoje executadas, ele será lembrado como um músico de Tatuí e um compositor e arranjador extraordinário”, completou Ramos.

Amigo de longa data de Neves Campos, o maestro e professor do Conservatório Luis Marcos Caldana lamentou a morte do músico. Como muitas personalidades, ele compareceu à despedida.

Os dois conheceram-se em 1979. Na época, Caldana cursava tímpanos, percussão e assessório (curso atualmente chamado de percussão sinfônica).

Caldana orgulha-se de ter sido o “primeiro aluno a se formar na gestão de Neves Campos”. O maestro falecido assumiu o CDMCC no final de 1984, permanecendo como diretor da instituição por 24 anos, deixando o cargo em 2008.

Na época, Caldana passou a atuar em bailes junto com Neves Campos. “Nós trabalhávamos muito. Fizemos shows com artistas como Aguinaldo Rayol e outros bailes, como o ‘Vermelho & Preto’. É uma vida, na verdade”, observou.

Antes mesmo de se formar, Caldana começou a dar aulas na escola de música, como monitor. A oportunidade surgiu a partir de convite feito por Neves Campos. Depois de diplomado, teve efetivação como professor.

“Não tenho palavras para descrever o Neves. Ele sempre foi aquela pessoa humilde, que sempre tratou tanto funcionários como professores no mesmo nível. Não tinha diferenciação de uma pessoa para outra”.

Caldana também afirmou que a personalidade de Neves Campos cativava os companheiros de trabalho. O maestro era conhecido por se preocupar com os funcionários e ter comprometimento com todos eles.

“Tanto que a gente brincava que a frase que ele mais falou na vida foi: ‘Tudo bem’. Então, para ele negar alguma coisa para uma pessoa, era porque realmente não estava dentro das possibilidades dele”, descreveu o professor.

Ao comentar sobre a importância do maestro, Caldana disse que a classe musical deve muito a ele. “Só temos a agradecer. Estamos perdendo um grande músico, um grande amigo, um grande pai. Estamos todos prestando essa homenagem porque, realmente, ele é uma pessoa digna de receber elogios”.

O professor da escola de música citou que, além do jeito peculiar, Neves Campos era profissional exemplar. Como diretor, alavancou e “revolucionou” o Conservatório. Na gestão dele, Caldana destacou que a escola chegou a ter mais de 3.000 alunos. “A nível nacional, isso é um feito grandioso”, sustentou.

Também trouxe, para Tatuí, festivais de MPB, além de criar encontros internacionais de música. “Tudo isso se deve ao Neves. A ampliação da imagem do Conservatório também é fruto da característica pessoal dele”, completou.

O legado de Neves Campos inclui contribuição não só à música, mas ao trabalho de outras personalidades. A professora Zoraide, por exemplo, disse que deve muito da vida pessoal e profissional ao maestro.

Os dois atuaram pelo mesmo período – 24 anos – na escola de música. Zoraide havia sido contratada, a convite do maestro, para coordenar a área de piano.

“Quando vim lecionar, eu já sabia da fama dele. Ele já era um grande músico. Ficamos amigos, e ele me ajudou muito”, comentou.

Neves Campos ingressou no Conservatório como professor de harmonia e teoria. O profissionalismo e o carisma o levaram ao posto da direção. “Ele era muito aberto a conversar. Era assim com todo mundo. Por isso, eu digo que não perdi só um amigo, perdi um irmão, um pai”, declarou.

Acompanhando o maestro, Zoraide deixou a função de coordenadora no mesmo ano que Neves Campos saiu do posto de diretor. “Apesar disso, nós nunca nos afastamos. Nunca deixamos de nos corresponder”.

Zoraide disse que, como ela, todas as pessoas que gostavam do músico, se sentiram órfãos. “Eu estou sofrendo muito”.

A professora acompanhou os últimos momentos do maestro, mantendo-se informada por meio da família. Foi uma das primeiras pessoas a saber do passamento do músico. Neves Campos estava sob tratamento de hemodiálise antes de ser internado e entrar em coma induzido por medicamentos.

“Soube quase que no momento em que ele fechou os olhos. Eu estava voltando para o trabalho quando recebi um telefonema”, lembrou a professora.

Ela ressaltou que a notícia do falecimento provocou comoção em todos os músicos. “O corpo docente (do Conservatório) não só da área de piano, de sopros, cordas, canto, percussão, está tremendamente sensibilizado. Para nós, ele significou um herói. Mesmo com as veias entupidas do coração, ele lutou com a vida e chegou a ficar até sem o tratamento de hemodiálise”, relatou.

Elogiado como pessoa, Neves Campos também é citado como músico excepcional. A professora de piano destacou a vontade dele de se superar e resolver os problemas dos amigos. “A gente, às vezes, não achava uma solução, mesmo para questões domésticas. Era só conversar com ele, que ele sempre tinha uma boa palavra, um encaminhamento bom para dar”, lembrou.

Zoraide fez questão de divulgar que o maestro sempre auxiliou quem o procurou e que mudou, com o jeito de ser, a vida de muitas pessoas. “Ele foi a melhor pessoa que eu conheci na vida. Sincero, amigo e devotado”.

A morte de Neves Campos repercutiu em todo o país. No município, autoridades compareceram ao velório para se despedir do músico. Entre elas, o prefeito José Manoel Correa Coelho, Manu, que se solidarizou com a família.

“É uma grande perda para o município, porque o Neves faz parte da história de Tatuí. Ele nos orgulhou muito. Hoje, estamos muito tristes”, declarou.

O prefeito disse que a perda é irreparável e que o maestro tem lugar “cativo no céu”. “Tenho certeza que ele vai estar abrilhantando a todos que lá residem. Ele era uma pessoa muito sincera, carismática e muito solícita. Tenho certeza que, nesse momento, já está ao lado de Deus, como mais um anjo para reger a orquestra na qual todos nós, um dia, esperamos estar”, afirmou.

A Prefeitura declarou luto oficial na quarta-feira, 23, por conta do falecimento. Manu disse que o ato é “o mínimo que o Executivo poderia fazer como homenagem ao músico”.

Manu disse, também, que existe a possibilidade de o maestro ser “imortalizado”. O município estuda a criação de um museu da música – pleito já feito pelo prefeito à Secretaria de Estado da Cultura – que pode levar o nome de Antonio Carlos Neves de Campos.

“Fica o nosso pedido para que a Câmara Municipal, assim que conseguirmos esse sonho, dê o nome do museu ao maestro. Esse seria o presente para todos os tatuianos e uma lembrança para sempre em memória dele”, concluiu.


A rapsódia do adeus ao Maestro Neves

O tempo mandava nuvens azuis e de púrpura sobre a terra. A lua, moeda polida, escondia-se, de espaço em espaço, por fiapos de nuvens. De repente, porém, o céu escureceu sobre nossas cabeças. Mais uma vez, o Destino fez um desvio, levando jovens na flor da idade. Foram-se os arpejos cintilantes, deixando, atrás, ele, cujas vibrações internas realizavam as escalas musicais mais elevadas – o Maestro e Músico Neves. Levando, consigo a Música, na qual mergulhava seus sonhos e segredos. A Música seu supremo refúgio. A Música – seu imperativo fundamental.

Em um tíbio filete de luz, nasceram, nele, as asas da Dor. Falhou o passo do milagre das infinitas pulsações do coração. E, num adágio melancólico, pianíssímo… deslizou para o Silêncio, entregando, a Deus, sua melodia alada. Com ele, foram-se os arpejos cintilantes com que musicava a vida, como provisão de maravilhas.

O Maestro Neves era alguém de excelência. Rara cultura. Alma límpida e espírito justo, sempre afastado do falso e do inútil. Indiferente aos acontecimentos banais das gazetas. Honestidade, simpatia, desprendimento, sinceridade. Sentimentos claros e imediatos. Criatura simples e dócil, de compreensão e bondade inatas. Sua vida foi uma composição carinhosa e confidencial do coração.

Músico profundo e versátil, sua alma já estava pronta para o Diálogo. Revestido do novo, irá solfejar as canções aos anjos e a Deus, que é Caminho, Via, Transporte e Condutor dos condutores.

Espera-o a contemplação do descanso. Aparelhado para sair deste mundo, cabe-lhe o júbilo de estar diante do Sobrenatural, orquestrando a partitura da aceitação.

Leila Salum Menezes da Silva