“O que não muda, não se move. E o que não se move está morto”. Foi assim, depois do silêncio da grande fermata, pausa que só os grandes dominam, que o histórico maestro Eleazar de Carvalho respondeu a uma pergunta de um músico que havia ingenuamente reclamado: “Mas o senhor não fazia assim”. Ora, se não fazia, agora o faz, pensei com os botões imaginários de minha camiseta. Ele via na sua transformação, na mudança de sua concepção um sinal de vida, de juventude, do pedestal alto de seus 75 anos, erguido com seu invejável currículo.
Transformação é evolução, sinal de vida, e não de morte matada ou morrida. Evoluem a lagarta para borboleta, o girino para sapo, todos os seres vivos transformam-se ou se transmutam, cada qual a seu ritmo, forma e tempo, obedecendo à batuta implacável da natureza, regente às ordens do compositor maior, o Criador (lembro aqui o capítulo “A Ópera”, do Machado de Assis).
Criar uma nova casa, que seja outra, ou que seja ali mesmo, onde já se mora, colorir na mente com a aquarela dos olhos o projeto de redesenhar a decoração, trocar ou mudar de posição alguns móveis que seja, namorar o belo imaginário, tudo é sinal de vida acesa, chama da vela que baila sedutora, sinuosamente suave para ser vista, vivida, vida que pulsa em todos os momentos de sua existência: “É o projeto da casa, é o corpo na cama / é o carro enguiçado, é a lama, é a lama / (…) São as águas de março fechando o verão, é a promessa de vida no teu coração” (1). Renascer é reviver o belo, é a redescoberta, o reabrir de janelas, mesmo sabendo dos riscos, sabendo arriscar e desfrutar de suas chances, quaisquer sejam elas: “até que plenitude e a morte coincidissem um dia / o que aconteceria de qualquer jeito / Mas eu prefiro abrir as janelas / pra que entrem todos os insetos” (2). Ou, em outros versos, “quero inventar o meu próprio pecado / quero morrer do meu próprio veneno / (…) quero cheirar fumaça de óleo diesel / me embriagar até que alguém me esqueça” (3).
O novo espreita a esperança, que vem de esperar mas não é do verbo palavra: esperar é ficar parado, não se mover, mas “quem sabe faz a hora, não espera acontecer” (4). Sopra sobre os vivos o sopro novo no velho da vida, vislumbra a beleza onde já não se podia vê-la, pois que escondida: “belo porque tem do novo / a surpresa e a alegria / belo como a coisa nova na prateleira até então vazia / (…) e belo porque o novo todo o velho contagia / belo porque corrompe com sangue novo a anemia / infecciona a miséria com vida nova e sadia” (5). Esperar que o casamento ou a sociedade comercial dure para sempre, quando de fato o que antes foi já era? Fica a convivência, mas onde a união, ungida até onde as partes se suportem? Ou a morte os aparte, diz sempre o celebrante. Seja qual tipo de união, ungida assim até onde se pensa, ela é ampla com seus perigos em forma de tragédia: “Ele fala em cianureto / e ela sonha com formicida / vão viver sob o mesmo teto / até que alguém decida” (6). Descobrir o novo onde parece não mais existir, retocar o quadro esmaecido, que em branco e preto suado e desbotado já está, “deitar à sombra de uma palmeira / que já não há / colher a flor / que já não dá” (7), refazer o belo jardim que de tão abandonado ficou seco e, sem perceber, no dia a dia, “nos intervalos de pedra (se) plantava palha” (5).
“Ouça um bom conselho que eu lhe dou de graça / inútil dormir que a dor não passa / Espere sentado ou você se cansa / está provado, quem espera nunca alcança” (8). Não basta noite de sono, mesmo se dormir bem, eis que quando o dia nasce, renascem com ele a fé e angústia, siamesas e recidivas. Resta reviver a vida, mudando como uma nuvem: “Eu sou a filha da terra e da água, e lactante do céu / eu passo através dos poros do oceano e da praia / eu mudo, mas não posso morrer” (9).
Esta é uma breve reflexão sobre este momento brasileiro, em que esperança tem de prevalecer sobre desespero, falta de rumos e mesmo sobreviver ao pecado do conformismo, que é sinônimo de tudo aceitar e esperar, resignado, pelo pior. Ou que sobrevenha algum milagre dos peixes. Deixando esta brevíssima obra aberta em tributo ao recém-falecido Umberto Eco, lembro que “mutatis mutandis” é uma expressão latina surgida na Idade Média que significa “uma vez feitas as necessárias mudanças”, comumente usada em diversos idiomas e frequente no vocabulário da economia, do direito, da lógica e da filosofia, entre outras áreas do conhecimento. Daí o título deste artigo. O Brasil não precisa de uma mudança, precisa mudar todo, a começar pela cultura do “cafezinho”, da “comissão”, do “por fora”, da “breja”, do “pixuleco”, do “acarajé” e todos os codinomes que a palavra mais utilizada nos dias de hoje, despudorada, rouba como gatuna, sem pedir licença: a corrupção. Muda, Brasil.
1 Antonio Carlos Jobim, “Águas de março”. 2 Caetano Veloso, “Janelas abertas”. 3 Chico Buarque, “Cálice”. 4 Geraldo Vandré, “Caminhando”. 5 João Cabral de Melo Neto, “Morte e vida Severina”. 6 Chico Buarque, “O casamento dos pequenos burgueses”. 7 Vinicius de Morais, “Sabiá”. 8 Chico Buarque, “Bom conselho”. 9 Percy Shelley (1792-1822), “A nuvem”.