Motivos de vergonha e de eterna gratidão

Mesmo já tendo transcorrido um ano e meio de pandemia do novo coronavírus, muitas dúvidas ainda seguem em aberto – não raramente sustentadas por quem mais deveria dirimi-las: as maiores autoridades da área.

Detalhe (muito significativo): “autoridades” de direito por instituídas nos cargos públicos, embora não de fato, posto não apenas estarem apartados dos maiores especialistas da área – por serem muito mais políticos que profissionais de medicina – quanto pelo descrédito imposto pelo negacionismo indisfarçável.

Há certezas, contudo. Uma delas: ao passo em que se aproxima das 600 mil vítimas da Covid-19 – as quais certamente teriam ocorrido em muito menor número se a vacinação começasse antes e houvesse bons exemplos de suas maiores “autoridades” -, o Brasil tem motivo para ainda passar vergonha mundial, com seu ministro justamente da Saúde mostrando o dedinho do meio a manifestantes na maior cidade do planeta.

Embora a cena possa ser cômica (e é), pelo patético distanciamento ao esperado de um ministro de estado, a verdade é que, figuradamente, aquele dedinho não é apontado apenas para os poucos que lá protestavam contra o negacionismo, mas para todos nós aqui, para todo o povo brasileiro, constrangido e ainda a contar mortos.

Esse coletivo desfilando por Nova Iorque, mesmo sem querer, tomou o rumo da (triste) história pela via do bizarro! Não por acaso e bem à verve do brasileiro de “rir para não chorar”, veio a ser chamada essa comitiva do ônibus circense como “excursão da quinta série”.

(Nem precisamos lembrar aos “cinquentões”, “quarentões” o que muitos faziam nos ônibus da tatuiana Empresa Rosa quando, por exemplo, iam ao Playcenter, em São Paulo. Dedos, algumas vezes, eram partes “inocentes” do corpo a serem expostas na janela…).

Contudo, mesmo quando tínhamos 12, 13 anos, a atitude já era motivo de repreensão por parte dos professores, quando não do motorista, que ameaçava botar pra fora o exibido adolescente da fuzarca.

Que se pode esperar, então, de um ministro? E justamente da Saúde!!! Sim, ele é ser humano, sujeito, portanto, a perder a cabeça. Verdade. Mas, até agora, ainda não se viu tamanha indignação nem mesmo diante das centenas de milhares de mortes causadas pelo vírus no Brasil.

Também poderia ter exacerbado o ministro, levando-o a levantar o dedo em alerta, o crime hediondo que seria o uso de seres humanos como cobaias no tratamento contra a Covid-19.

Lembrando: é isso o denunciado na CPI da Covid quanto ao plano de saúde Prevent Sênior, cujos dados de suposta pequena taxa de letalidade pela doença em seus pacientes, inclusive, têm sido ininterruptamente propagados pelo presidente da República na defesa do tal “tratamento precoce” (mais um motivo de constrangimento do Brasil na ONU).

O que faria com o dedo do meio o ministro da Saúde (lá diagnosticado com o novo coronavírus, em outro fenômeno de vergonha nacional) se soubesse, hipoteticamente, que o plano de saúde de sua mãe, de seu pai estaria se utilizando de práticas macabras à la Josef Mengele para combater Covid-19 com remédio de câncer para a próstata?

E que faria você, leitor/leitora, se descobrisse, de repente, que não apenas seu plano de saúde estaria subnotificando as mortes pela doença, dando-lhe a impressão de que seus pais estão bem cuidados, mas que eles estariam sendo usados, literalmente, como cobaias?

Sem qualquer dúvida, nesse momento, todos concordaríamos (equivocadamente) que, afinal, comprar arma é melhor que arroz com feijão mesmo, pois com ela seguiríamos à sede do hospital na fúria de fuzilar seus gestores…

Por sorte dos tatuianos, aqui nada disso sequer em sonho chegou a ser imaginado, conforme evidenciado na edição de aniversário de Tatuí, dia 11 de agosto, quando o jornal O Progresso publicou uma série de reportagens em homenagem aos profissionais de saúde do município.

Por elas, de maneira comovente, demonstrou-se o profissionalismo e o tamanho do desprendimento, da superação e da sensibilidade de incontáveis profissionais tatuianos no combate à Covid-19, tanto e da mesma forma na Santa Casa, pelo SUS, quanto no hospital da Unimed.

E, então, excepcionalmente escapando ao “protocolo” comezinho dos editoriais de jornal, vale muito o registro, a título de exemplo e justiça, de um episódio envolvendo a direção deste jornal, em razão do qual dois de seus integrantes acabaram hospitalizados na Unimed com coronavírus.

Afora o atendimento tão atencioso quanto de excelência por parte de todos os profissionais – sobretudo os da enfermagem -, a preocupação com o “acolhimento”, com a “humanidade” no tão delicado tratamento, destaca-se positivamente ainda mais diante das chocantes notícias da atualidade nacional.

Um belíssimo e tocante exemplo disso foi deixado pelo doutor Rodolfo Enrique Postigo Castro, médico infectologista tragicamente morto durante latrocínio na cidade do Guarujá.

Esse extraordinário profissional, muito pouco tempo antes, havia sido o responsável médico pelo tratamento deste editorialista, quando então na enfermaria da Unimed Tatuí.

Ocorre que a esposa deste – também da direção do jornal O Progresso – havia sido hospitalizada dias antes. Assim, pediu este editorialista ao médico se poderia, naquela oportunidade, ser levado ao mesmo quarto que ela, para fazerem companhia um ao outro durante o tratamento.

A resposta do doutor Rodolfo foi uma pergunta: “Você tem certeza de quer isso?”. Sem entender ao certo, a réplica foi um cauteloso “sim”, seguido de um “por quê, doutor?”.

A que o médico, profissional “de verdade”, com toda a sua experiência e bom senso, ponderou: “Porque você pode evoluir bem, e ela, não; ou ela evoluir bem e, você, não. Se isso infelizmente acontecer, você quer mesmo que ela te veja nessa situação?”.

Claro que, com esse petardo de consciência e perícia profissional atirada ao peito já sem fôlego, este sujeito entendeu a mensagem e agradeceu ao doutor Rodolfo, com toda a sinceridade, ficando quietinho em seu quarto.

Por aí se vê, contudo, o tamanho do drama que pode significar a Covid-19 e o quanto é vital a experiência e a “humanidade” dos profissionais de saúde na busca pela cura.

E mais – muito mais! – nota-se a diferença abissal entre um ministro que mostra o dedo a quem protesta contra a morte e um doutor Rodolfo, que, dia a dia, esteve salvando vidas, como assim o seguem tantos outros exemplares profissionais de saúde.

Após um agradecimento pessoal que, felizmente, foi possível acontecer em seguida à alta hospitalar e antes da fatalidade sofrida pelo médico tatuiano, fica aqui o marco deste singelo episódio, como mais uma forma de homenagem e eterna gratidão deste jornal. Muito obrigado, doutor Rodolfo Enrique Postigo Castro!