“Canção do Cisne” é expressão que se relaciona a uma despedida, no sentido mais amplo. Diz a lenda que esses pássaros aquáticos entoam uma lindíssima canção ao se verem perto do fim. Finca origens no século 3 a.C., apesar de já haver referências em 6 a.C. Na mitologia grega, o cisne era um pássaro consagrado ao deus Apolo, e, como ele, um paradigma de beleza. Na fábula de Esopo (6 a.C) “O Cisne e o Ganso”, o belo pássaro escapou cantando, após ser capturado por engano como ganso. Grego também é “Agamemnon”, de Ésquilo (458 a.C.), em que Cassandra, que anteviu a guerra de Troia, canta como um cisne em seu final. A partir do século 3 a.C., “O Cisne” desvendou-se pura invencionice: a “História Natural” do romano “Plínio, o Velho” (77 d.C.), deu fim à lenda: “olorum morte narratur flebilis cantus, falso, ut arbitror, aliquot experimentis” (a lenda do cisne é falsa!). Ainda assim, continuou inspirando: o escritor medieval Chaucer e depois seus conterrâneos ingleses Shakespeare (1564-1616), em “O Mercador de Veneza”, Coleridge (1772-1834), e o “Schwanengesang”, um concerto para oboé de 1773, do alemão Telemann. “O Cisne”, do francês Saint-Saëns (1835-1921), foi o único movimento que achava “sério” em seu “Carnaval dos Animais” (os demais eram troça com personagens e compositores de sua época). O cisne-violoncelo canta com o acompanhamento de um piano, até se esvair no nada. O compositor achava seu “Carnaval” uma “nobilíssima bobagem” blague como a “reverendíssima besta”, de Mário de Andrade.
Conheci Martha Herr no Encontro de Orquestras Jovens de Tatuí, em 1984, em que fui um dos professores e Martha abordava técnicas de respiração. Em alguns de meus intervalos ia assisti-la, pois respiração é para todos – o grande violoncelista Janos Starker (1924-2013) foi autor de estudos sobre a coordenação entre os movimentos do arco e o diafragma. Seguiram-se 31 anos de admiração e amizade absolutamente imaculada. Martha tinha uma erudição incomum em nosso idioma, foi uma brasileira nascida nos EUA. Em comum, também, o signo do touro no zodíaco. Todo mês de maio, fazia reuniões com seus amigos taurinos, usando o signo como desculpa – curioso: “signe”, em francês, soa como “cygne”, cisne. Desculpa talvez não, vai saber se algo em comum estava escrito nas estrelas. Pura diversão: nós, o finado violinista Bruce Mack, a violoncelista Gretchen Miller e outros.
Na penúltima vez em que Martha esteve em Tatuí, para provocá-la lembrei a divíssima Bidu Sayão, que havia reclamado a Villa-Lobos que na “Dança (Martelo)”, segundo movimento das “Bachianas nº 5”, aquele “cariri” agudíssimo era muito ruim de ser cantado por causa da vogal “i”. Era uma brincadeira que eu fazia com as sopranos, já que Villa-Lobos queria que suas músicas fossem cantadas em claro português brasileiro. Perguntei a Martha se ela tinha problemas com o “cariri”, e então, com a boca bem aberta, aqueles dentes de criança, lascou “o caririiiiiiii…” com tamanho volume em minha orelha que parece zunir até hoje.
Foi especialista em música contemporânea e brasileira, dedicando-se, em seus estudos e trabalhos acadêmicos, à pronúncia clara em sua língua adotiva: enorme contribuição, seus alunos e colegas que o digam! Com tudo isso, tornou-se cobiçada por nossos compositores, fazendo várias primeiras audições. Mas sempre reclamou que era raro ser chamada para grandes títulos de ópera, razão pela qual firmou sua reputação como camerista ou solista de textos de câmara como o “Exultate Jubilate”, de Mozart, missas e motetos, além da música do século 20, uma dedicada especialidade. A última aparição como diva em um palco brasileiro foi na ópera “Olga” (2006), do nosso ilustre amigo comum Jorge Antunes, com libreto de Gerson Valle. Dos bastidores, conheço a cena.
Em 2002 ou 2003 recebi Jorge Antunes, de Brasília, e o levei à então sede da Orquestra Experimental de Repertório, da Prefeitura de São Paulo. Antunes veio puxando um carrinho de viagem com as três enormes partituras de seu extenso trabalho de dez anos. Contemporâneo de invejável formação europeia, uniu um tema histórico e o repente nordestino ao pai da grande ópera, Richard Wagner, que o inspirou em um lindo intermezzo eletroacústico que cita o prelúdio de “Tristão e Isolda”. Outra citação é o “canto do cisne” do “Liebestod” (amor e morte), uma ária de 15 minutos para o ocaso de “Olga”, tal qual a “Isolda” de Wagner. Malsucedida na primeira tentativa, fui ao então secretário da Cultura, Calil, falar sobre a importância de estrear a ópera. Havia o livro do Fernando Morais e o filme, e raras são as óperas brasileiras. Calil concordou, mas o Teatro Municipal ofereceu um cachê para Martha e Fernando Portari simplesmente inaceitável. Com presteza, Calil logrou quase triplicar os cachês, para um valor digno. Em 14 de outubro de 2006 “Olga” finalmente estreou no olimpo, o Municipal de SP, sob a batuta de José Maria Florêncio, um especialista em óperas residente na Polônia. No camarim, após abraçar autor e soprano, recebi uma dedicatória, o afago “ao querido amigo e grande músico” do compositor, e um agradecimento especial da cantora: ”Obrigada por ajudar. Beijos, Martha”.
Com tudo o que nos legou como artista, pesquisadora, professora, amiga de caráter exemplar, escreveu uma página da nossa música, dedicando-a sem autógrafo ao país que adotou. Martha nunca morreu, nem foi o falso cisne da lenda! Apenas não se pode assisti-la viva – apenas mais que viva, como ainda vive cantando dentro de nós.